HIC ET NUNC
O ASSOMBROSO UNIVERSO DO DESFRUTE
INDIVIDUAL
O
progresso técnico-científico traz consigo meios, que sem dúvida são positivos,
podendo potenciar uma saudável convivência entre os povos. No entanto a
realidade mostra um mundo envolvido em conflitos, mais ou menos complexos, mas
que sempre levam ao afastamento entre uns e outros. Vivemos uma época de
disfrute individual, em que todos se centram sobre si mesmos em que tudo é
imediato, retirando uma perspectiva futura de existência em que se valoriza o
essencial e refute o acessório. O secularismo individualista pela obtenção do
êxito impede, muitas vezes, a criação de um pensamento que privilegie um mundo enquanto
lugar de promoção da convivência da partilha, em vez de uma aposta constante na
concorrência, nem sempre limpa e correta. Ser competitivo não retira a
capacidade de cooperação, antes pelo contrário, a concorrência “limpa” deverá
apostar num sucesso fomentador de desenvolvimento coletivo. Claro que o
reconhecimento individual é importante, já que valoriza o esforço e a aplicação,
refutando a preguiça e a distração, no entanto esta valorização não pode ser o
fim mas o meio para um progresso para o bem-estar coletivo.
A
sociedade tem cada vez mais se desprendido da sociologia e da filosofia, estamos
perante um ser humano confrontado com uma cadeia de valores frágeis, que se
alteram conforme tendências, uma “new age” que cria um mundo somente para si
mesmo, composto pelo egoísmo materialista, originando que conceitos como
fraternidade e partilha sejam apenas debatidos como algo alheio a cada um.
Este
facto tem levado ao pouco interesse pelo religioso, tudo se coloca na agenda do
hoje, acentuada pelo culto de do eu individualista.
O
próprio disfrute individual, tem também reflexos no próprio “universo”
religioso, em cada um constrói o seu Cristo, mas poucos seguem Jesus de Nazaré.
Deus
em si mesmo não tem religião, as religiões têm sempre um carater de
identificação cultural para o encontro com o divino.
Ter
fé não é : “pensar que...”, “desejar que...”, ou mesmo “sonhar que...”. As respostas sobre as
razões da fé não estão nas evidências
daquilo que é acreditado, que não deixando de serem razões, têm no entanto a
sua origem a partir da autoridade Daquele que nos propõe a acreditar. A fé
cristã tem as suas bases numa pessoa, na pessoa de Jesus de Nazaré.
“Ao
início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte
e, desta forma, o rumo decisivo.”
(Deus
Caritas est, 1)
A partir desta fé inicial, todos
podemos ser tocados por Deus, um tocar envolto no eterno beijo divino, assim e
neste acolhimento do amor de Deus (“tocar divino”) somos chamados a uma entrega
consciente e livre em colocarmo-nos nas “mãos de Deus”. Ao colocarmos
verdadeiramente Deus como motor da nossa existência, recusamos naturalmente
viver sem esta presença divina na nossa vida. Jamais podemos desprender a fé da
própria revelação de Deus, um Deus que não obriga a acreditar, mas que Se dá à
criatura amada, entrando “dialogo”, elevando deste modo a própria pessoa
humana, que mesmo sem o merecer, apresenta-se como interlocutor divino, podendo
agir no mundo como presença visível de um Deus invisível.
Durante a nossa existência passamos por
tentações, para as quais não temos, muitas vezes, a força e a determinação para
as recusar. As tentações no deserto (cf. Mt 4,1-11; Mc 1-12-13; Lc 4-1-13), são
também as nossas tentações perante um mundo envolvido no puro hedonismo e num
materialismo a de proporções gigantescas. A forma de “lutarmos” contra as
tentações não pode ser remetida para o mero discurso retórico e muitas vezes
utópico. Como crentes devemos ser os primeiros a refletir na Palavra perante as
incidências da vida, e não em remetê-la apenas para os locais de culto. A forma
de combater as tentações tem de fazer parte da postura quotidiana, em que a
resposta tem que surgir a partir da própria postura inequívoca de Jesus.
Ao analisarmos as três tentações de
Jesus no deserto, notamos que estas não são apenas inscritas originariamente no
Evangelho, assim já literatura prototestamentária estes aspetos são abordados,
existindo grandes paralelismos nas palavras de Jesus e nos textos mais antigos.
No jejum de Jesus vemos a inspiração em
Dt 8,2-3 sendo que os próprios quarenta dias são perfeitamente
visíveis em Ex 34,28 e Dt 9,9.
“Recorda-te
de todo esse caminho que o Senhor, teu Deus, te fez percorrer durante quarenta
anos pelo deserto, a fim de te humilhar, para te experimentar, para conhecer o
teu coração e ver se guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou e
fez passar fome; depois, alimentou-se com esse maná, que nem tu nem teus pais
conhecíeis, para te ensinar que nem só de pão vive o homem; que tudo o que sai
da boca do Senhor é que o homem viverá”
(Dt
8,2-3)
“Moisés
permaneceu junto do Senhor quarenta dias e quarenta noites, sem comer pão nem
beber água. E escreveu nas tábuas as palavras da aliança, os dez mandamentos.”
(Ex
34,28)
““Quando
subi à montanha para receber as tábuas da aliança que o Senhor fez convosco,
permaneci na montanha na montanha quarenta dias e quarenta noites, sem comer
pão nem beber água”
(Dt
9,9)
A ostentação é refletida em Sl
91,11-12, sendo que o próprio Jesus cita Dt 6,16
“É
que Ele deu ordens aos seus anjos,
para
que te guardem em todos os teus caminhos.
Eles
hão-de elevar-te na palma das mãos,
para
que não tropeces em nenhuma pedra.”
(Sl
91,11-12)
“Não
tenteis o Senhor vosso Deus, como tentaste em Massá”
(Dt
6,16)
Na idolatria os paralelismos aparecem
em Dt 34,1-4, e a resposta de Jesus é refletida em Dt 6,13
“Moisés
subiu das planícies de Moab ao monte Nebo, ao cimo do Pisga, que está em frente
de Jericó. O Senhor mostrou-lhe toda a terra, desde Guilead até Dan, todo o
Neftali, o território de Enfraim e de Manassés, todo o território de Judá até
ao mar ocidental, o Négueb, o Quicar, no vale de Jericó, cidade das Palmeiras
até Soar”
(Dt
34,1-4) … com a diferença de quem mostra, de quem quer ser quem…
“Ao Senhor, teu Deus,
adorarás, a Ele servirás, e pelo seu nome jurarás”
(Dt 6,13)
Este deserto de profundo recolhimento
(cf. Os 2,16-20) tem que ser para nós, principalmente
nesta época quaresmal, como um momento de reflexão, de um olhar sobre a
vida e sobre o mundo, para que a partir de uma fé sólida e realista possamos
trilhar um caminho para uma vida renovada.
Os três anos de vida pública de Jesus
foram marcados por uma intensidade dramática ao nível divino e humano. Assim, a
nossa resposta, enquanto Igreja viva, deve ter em Cristo a inspiração para uma
atitude participativa na sociedade e no mundo, valorizando a Pessoa em toda a
sua dimensão. Esta atitude deve ser entendida como missão, uma missão em
desprendimento total dos nossos propósitos egoístas, que não busque o
reconhecimento, mas que se concretize no serviço. Também nós necessitamos cada
vez mais da busca pelo silêncio do recolhimento, de momentos de profunda
reflexão acerca do nosso propósito de existência, e não de um constante
interesse pelo disfrute individualista de sensações, mais ou menos passageiras,
mas que em nada alimentam a consciência do essencial; andamos muitas vezes
perdidos (se bem que não o admitamos) no barulho da distração.
Cristo fez-se interiormente e
exteriormente igual a nós (cf. Heb 2,17), tendo mesmo se compadecido com as
nossas fraquezas e faltas, porque em tudo foi igual a nós exceto no pecado (cf.
Heb 4,15).
Na vida concreta cristã, a Doutrina
Social da Igreja atravessa uma fase um pouco desanimadora. Andamos alheados da
natureza da moral cristã, da sua forma como nos convoca para sermos fermento da
sociedade, enveredando por um via de dignificação permanente da criatura amada.
PARTINDO
DA CORAGEM PERANTE A FRAGILIDADE,
PARA
A GRAÇA DA EXISTÊNCIA COMO DÁDIVA
Atravessamos, como alguns referem, “a
passagem da cultura dogmática para a cultura da incerteza”, esta realidade leva
a que, juntamente com um coração aberto, devamos também estar cientes do que
somos e do que nos torna cristãos, excluindo sempre presunções de que somos os
detentores de toda a verdade, mas que através dela sejamos capazes, isso sim,
de acolher o outro como imagem do Outro, Esse Outro que ao fazer-Se homem
assume na vida terrena a manifestação divina de Deus. Jesus ao cumprir a
vontade, incorpora a própria verdade encarnada Nele, sem nunca deixar de ser
homem. Na Sua palavra reflete-se a beleza Daquele que É (cf. Ex3,14), Dele vem
o sopro inspirador para a Igreja, que se refletirá numa formação de uma “nova”
ética moral, em que Jesus Cristo, não fique remetido para o universo religioso,
mas que faça realmente parte da vida.
Nestes dias em que a informação “viaja”
facilmente no mundo, temos de ter a capacidade de fomentarmos o desejo pelo
encontro de Deus na vida de cada um, porque a vida sendo dádiva, é em si mesma
aberta à presença de Deus, que a eleva e a aperfeiçoa – “elevat et perficit” -.
A tendência para se expulsar a ética
cristã da construção social, tem oferecido uma contrapartida cruel e sem
esperança, assim, e ao contrário do que se possa pensar, aqui pode estar a
chave para uma renovada dinamização da própria fé, uma fé que se deixe tocar
pelo amor divino para a construção de uma existência mais humanizante. A fé particular
(em que muitas vezes construímos, erradamente, um deus somente nosso) pode ser
o início para abrir o interesse pelo Evangelho.
O vinculo do amor não deriva de
soluções técnicas, mas sim da profunda graça de Deus, que sendo Amor se dá em
Amor e em Amor se manifesta a todos. Assim a própria solução técnica, bem como
as ações concretas da doutrina devem ter no amor dedicado a sua força, porque a
graça do Amor de Deus nunca destrói a natureza – “gratia non destruit naturam” -.
Na humanidade de Cristo ficamos
perfeitamente conscientes do “não fazer” e do “não cumprir” a Sua vontade. É
impressionante como se nega todos os dias a Cristo, mentimo-nos a nós mesmos,
fazendo crer que estamos a seguir o Seu caminho... mas se pararmos, notamos a
verdade que queima o coração.
“Jesus
tomou, pois, a palavra e começou a dizer-lhes:
“Em
verdade, em verdade vos digo: o Filho, por si mesmo, não pode fazer nada, senão
o que vir fazer ao Pai, pois aquilo que este faz também o faz igualmente o
Filho””
(Jo
5,19)
““A
minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém está disposto
a fazer a vontade dele, é capaz de ajuizar se a doutrina procede de Deus, ou se
Eu falo por minha conta.””
(Jo
7,16-17)
““Realmente
não eram capazes de crer, por isso Isaías também dissera:
Cegou-lhes
os olhos
e
endureceu-lhes o coração,
para
não verem com os olhos
e
não entenderam com o coração
e
não se converterem
e
Eu ter de os curar.””
(Jo
12,39-40)
““Quem
me rejeita e não aceita as minhas palavras tem quem o julgue: a palavra que Eu
anunciei, essa é que o há-de julgar no último dia; porqu Eu não falei por mim
mesmo, mas o Pai, que me enviou, é que me encarregou do que devo dizer e
anunciar.”
(Jo
12,48-49)
““Em
verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim também fará as obras que Eu
realizo; e fará obras maiores do que estas, porque Eu vou para o Pai, e o que
pedirdes em meu nome Eu o farei, de modo que, no Filho, se manifeste a glória
do Pai. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, Eu o farei.””
(Jo
14,12-14)
“Pai,
quero que onde Eu estiver estejam também comigo aqueles que Tu confiaste, para
que contemplem a minha glória, a glória que me deste, por me teres amado antes
da criação do mundo”
(Jo
17,24)
A Trindade eterna leva a todos à
ternura do amor desprendido e alerta, porque cada vez mais, numa sociedade
envolta por egoísmos (do cada um por si), o grito do sofrimento e da humilhação
se escuta no mais profundo silêncio da vergonha, um silêncio que retira a
esperança, levando a que muitos optem por pôr fim à vida... daí que a Doutrina
Social da Igreja tem hoje que ser colocada em prática por todos e para todos.
Assim não busquemos sempre as lamentações
e os problemas, olhemos para o mundo realisticamente, mas sempre envolvidos
pela esperança e a alegria de termos um Deus que nos acompanha e nos ampara.
Não vivamos imaginando um paraíso ausente, nem paralisados pelos pecados
cometidos, tenhamos a consciência de olharmos para a realidade como é, fazendo
do nosso tempo, um tempo em que Deus se manifeste no mundo. A humanidade de
Cristo está acima dos Estados e das mudanças sociais, Ele é a prova suprema do
Amor de Deus pelo mundo, sendo que a generalidade do tempo humano é um fenómeno
de analogia intima que esclarece, na sua totalidade, o tempo de Cristo no qual
tudo culmina.