. a existência do mal, enquanto realidade antropológica ou
religiosa.
. Deus responsável da tragédia, e Deus que em si mesmo
“agrada-lhe” o sacrifício.
Podemos resumir: Deus sádico!
Poderei colocar de outro modo, como
pode existir um Deus que não seja bom?
A opinião que vou dar é inteiramente pessoal, baseio-me na
análise e na razão, vou também falar acerca do Cristianismo, e não de outras
religiões, se bem que tem existido uma tentativa falhada de colocar tudo no
mesmo “saco”, o que não está. Mesmo do ponto de vista filosófico todos
deveremos refletir a moral com o cuidado que acarreta cada cultura, cada tempo,
etc.
A.) Sofrimento.
Quando o assunto é o sofrimento é necessário ter muito
cuidado e acima de tudo muita humildade e sensatez. O sofrimento é mau, disso
não pode jamais existir qualquer dúvida. O mal, nas suas diversas expressões, é
desconcertante em toda a sua profundidade, chegando mesmo, em muitos casos, a
escapar ao entendimento racional.
A maneira como hoje vivo a vida, como as coisas se vão
maturando na consciência, a forma como vivo a fé, leva-me cada vez mais a
compadecer com os outros, a olhar para a fé com a dor de todos os mal do mundo,
e que muitas vezes são cometidos em nome do “mesmo” Deus em que acredito, no
Deus que Jesus nos mostrou.
“Deus permitiu inconsistências na Bíblia, para nos mostrar
que não nos devemos empenhar numa leitura literal da Escritura, mas que devemos
procurar o seu significado mais profundo”.
Esta frase interessantíssima de Orígenes foi feita no séc.
III, no entanto continua atual. Como se pode constatar este problema da
literalidade na abordagem à Escritura não algo de novo tendo mesmo levado a que
a teodiceia ganhasse forma. Esta disciplina aborda como reconciliar a
existência do mal e do sofrimento no mundo com a fé num Deus bondoso e
omnipotente. Obviamente que não pode fornecer respostas claras, no entanto o
falhanço não está na teodiceia mas no “objeto” que analisa.
Mas surge também uma questão legítima,
será que o ateísmo dá as respostas certas, ou fica na especulação?
Será que não é mais fácil, perante a confrontação do mal e do
sofrimento, chegarmos à conclusão que Deus não existe?
Nunca podemos esquecer que a teologia enquanto disciplina,
não está confinada ao “dogma” da fé como tal, a teologia “vive da heresia”,
necessita dela como opositora indispensável.
Perante o sofrimento, somos capazes das dissertações mais
abrasadoras, todos gostamos de dar opiniões, mas antes de tudo em vez de
arranjarmos teorias, temos que ter a humildade do silêncio. Eu não sei nada do
que é o verdadeiro sofrimento, já contactei pessoas que atravessam pelo deserto
da dor (que nem sempre é física), mas a palavra de pouco adianta. Fico
completamente revoltado com algumas pregações acerca do sofrimento, que não
cabem na cabeça de ninguém...
Imagina alguém que perdeu um filho criança com uma doença
que a fez sofrer..., o que dizer a essa pessoa, “que deus assim quis, foi a sua
vontade?!”, então que deus é este que se diz amor e que “quer” para satisfazer
a sua “vontade”, a morte de uma criança. A dor humana, mesmo quando revestida
da armadura do ateísmo militante, é algo que os cristãos devem tomar a sério e
tratar com respeito, porque é “território sagrado”. Estar com quem sofre não é
justificar o sofrimento, ou tentar justificar Deus perante o sofrimento, não é
Deus que necessita de justificação, mas sim a quem sofre urge o alívio.
Muitos dos que vivem no sofrimento, querem por todas a vias
ter a certeza da inexistência de Deus, porque se Ele existe faz dano. Para quem
sofre deus é aquele que faz a vida enfadonha, mais complicada e mais pesada do
que já é. Todos fazem a mesma pergunta, porquê eu? Porquê agora? Quando
acabará?
Tive um amigo que foi atingido subitamente por um cancro
fulminante, desde a descoberta da doença até à morte, esse meu amigo viveu
pouco mais de dois meses numa completa decadência física e psicológica.
Acreditava em Deus, no entanto não era cristão. Muitas vezes tentou arranjar
justificações para o que lhe aconteceu, no entanto e com o passar do tempo,
apenas ficou o silêncio. Ele não queria falar em nada apenas queria que eu
estivesse ali presente... apenas a presença... já não havia lugar para
palavras, discursos, dissertações, apenas a presença...
Daí que não vale a pena frases belas sobre o sofrimento, o importante é estar
presente... a dor muda o temperamento, altera os pensamentos e as certezas da
vida.
Uma outra forma de viver esta
realidade (e atenção nada justifica o mal em si), estão em testemunhos que nos
levam a uma dimensão em no interior do sofrimento, e através da fé em Jesus, é
possível viver algo enormemente admirável. A tortura do sofrimento pessoal
encontra-se com uma intimidade singular com Deus, e esta relação é absorvida
pelo movimento, no qual o sofredor reúne a sua dor com a dor de todos, mesmo assim
isto não tira jamais a constatação de que o sofrimento é mau. Etty Hillesum é
um caso em que perante o horror e o sofrimento do holocausto, foi capaz de ter
uma espiritualidade aterradora, de compaixão e amor a Deus.
“São tempos de horror, meu Deus. Esta noite,
pela primeira vez, fiquei acordada no escuro, os olhos ardentes, imagens de
sofrimento humano desfilando sem parar à minha frente. Oh, meu Deus, vou
prometer-te uma coisa, uma ninharia: vou proteger-te hoje, de tantos fardos,
das angústias que o futuro me inspira; mas isto requer um certo tempo. Por
agora, cada dia vale a pena. Vou ajudar-te, meu Deus, a não desvaneceres em
mim, mas não posso garanti-lo à partida. Agora contudo, me aparece mais claro:
não és Tu quem pode ajudar-nos, mas somos nós que te podemos ajudar – e, ao
faze-lo, ajudamo-nos a nós próprios. É tudo o que o que podemos salvar neste
momento e é também a única coisa que conta: um pouco de Ti em nós, meu Deus.
Talvez possamos nós contribuir-Te para Te divulgar junto dos corações
martirizados dos outros”
Etty Hillesum morreu em Novembro de 1943, em Auschwitz,
tinha 29 anos.
Daí que repita, é necessário muita sensatez ao abordar o
sofrimento, principalmente fazendo-o ressoar no ambiente da crença. Cuidado
tanto as divagações fáceis em relação ao sofrimento enquanto
acontecimento. Assim como critico algum tipo de crença pouco esclarecida, não
tenho duvidas em notar em muitos ateus, que implícita ou inconscientemente
manifestam raciocínios pseudoteológicos, que mais não passam do que elaborações
baseadas em noções de religiões primitivas. Mas isto fica ao critério e ao bom
senso de cada um.
B.) Deus
não é sádico.
Agora ao entrar mais na concepção cristã, continuo a referir
que estas opiniões são pessoais, no entanto baseadas na leitura e análise das
Escrituras (tanto canónicas, deuterocanónicas, apócrifas).
O sofrimento não tem exclusões, todos somos sujeitos a ele, não
há imunes, atinge a todos: crentes ou não crentes.
De um ponto de vista de análise teológica, a tentativa de
“desculpar” Deus pode ser visto em três linhas:
1. O
sofrimento como castigo.
Deus enviaria um castigo quando “perde a
paciência”. Deus em toda a história compreende, socorre, acolhe, espera,
perdoa. No entanto chegará a um determinado momento que Deus determina (perante
a postura humana) o envio do castigo, do sofrimento.
Podemos constatar esta forma (bizarra) de
conceber Deus, ainda muito presente. Já todos conhecemos a expressão: “o que fiz eu para merecer isto?!”
Também no Evangelho esta procura do pecado para justificar o mal está presente,
mostrando o seu enraizamento na comunidade da altura.
“Ao passar, Jesus viu um homem cego de
nascença. Os seus discípulos perguntaram-lhe, então: “Rabi, quem foi que pecou para este homem ter
nascido cego? Ele, ou os seus pais?” Jesus respondeu: “Nem pecou ele, nem seus pais, mas isto aconteceu para nele se
manifestarem as obras de Deus. Temos de realizar as obras daquele que me enviou
enquanto é dia. Vem aí a noite, em que ninguém pode atuar. Enquanto estou no
mundo, sou a luz do mundo”
(Jo 9,1-5) mas também em paralelos sinóticos (Mt 9,27-31; 20,29-34; Mc 8,22-26;
10,46-52; Lc 18,35-43)
2. O
sofrimento como purificador.
Esta noção baseia-se na imagem de um Deus
que nos segue muito de perto enviando-nos algo que “prove” a nossa fé. Um Deus
que necessita de provas, e estas serão dadas num quase estoicismo perante o
sofrimento.
3. O
sofrimento como crescimento da pessoa em busca do bem.
Está muito próximo do ponto 2., no entanto
existe uma plena consciência pessoal que o crescimento da fé está num estilo
que vida austero, em que o sofrimento (muitas vezes carnal) é a resposta à
soteriologia. O sofrimento seria uma graça que Deus exerce sobretudo aos que
mais o querem. Neste ponto gostaria de salientar o seguinte, nada tenho contra
a vida ascética, nem a um exercício pneumatológico que exerça uma austeridade a
quem o realiza. O que não consigo entender é a colocação do sofrimento nessa
busca..., não há nenhuma razão teológica para tal. Uma coisa é a vida
contemplativa, por si mais dura, outra é o exercício e a busca do sacrifício
carnal como se este se apresentasse como uma graça. Sou um grande admirador de
Teresa d´Ávila, como de João da Cruz e outros místicos fundamentais, respeito
as suas opções mas não posso de deixar de ficar impressionado com alguns
excessos por estes cometidos. O místico entende, melhor do que ninguém, o
significado integral da entrega total de si a Deus. O sentido da sua existência
que já aponta para uma dimensão que não esta, na sua elevação espiritual
abre-se totalmente ao próprio mundo. Uma vida doada totalmente a Deus trás
consigo renúncias, elevando a humildade total de si mesmo perante a magnitude e
beleza infinita de Deus.
João da Cruz por exemplo, após a ordenação sacerdotal a sua vida tornou-se
ainda mais reforçada na profunda oração e contemplação, “submergindo em Deus”
ao qual juntou uma rigorosa mortificação. Fazia jejuns severos, assim como usou
durante catorze anos, debaixo da túnica, um cíclicio, o que com o movimento
corporal lhe esfolava a pele.
Mais uma vez reforço sou um grande apaixonado
pelos místicos, no entanto (e respeitando-os), humildemente confesso que não me
revejo neste tipo que ações. “O que o corpo perde, a alma ganha; o que o corpo
ganha, a alma perde.” frase de Cura
D´Ars é colocada no sentido de entrega e de desapego, não no sentido de
autoflagelação.
Colocando a minha verdade, aquilo que me faz viver a fé, não
me revejo em nenhum dos três. De uma forma simples: se somos feitos à imagem e
semelhança de Deus (Gn 5,1), sempre que amo alguém o que nunca farei é faze-lo
sofrer.
Podem vir justificações de vários lados e de vários fundamentos, no entanto é
um perigo falar de um deus como aquele que dispõe, provoca e permite o
sofrimento. Como abordarei na última parte, mesmo de um ponto de vista
estritamente evangélico, não foi este o Deus que Jesus apresentou, e que
inspirou o Cristianismo.
No dia de hoje morrem pessoas em acidentes, em confrontos
(como na Síria), a cada cinco segundos morre uma criança de fome...! Agora
façamos o exercício em pensar num deus, que para sua satisfação, está a enviar
um castigo para aqui, outro para a Síria, outro para o Canadá, do estilo mitológico
em que o deus de tronco nu e de barbas envia os seus “raios”. Um deus que agora
vai colocar-me à prova, daqui a uns minutos vai colocar uma pessoa na
Baixa-da-Banheira... só para alimentar a sua glória! Sejamos sensatos, é este o
Deus de Jesus?
Será este um Deus viável?
Foi baseado nisto que Jesus procurou os desfavorecidos, os
excluídos, que pregou a paz, que não levantou um dedo contra ninguém?
Claro que não, mesmo os não crentes ao falarem de Jesus não o vêm com esta
estratégia maquiavélica, pela simples razão que não a teve. Daí que quando se
fala de Cristianismo e se vê um Deus justiceiro, sedento de sangue, não é o
Deus de Jesus, como tal, não é o Deus cristão. Talvez alguns O queiram assim,
mas não é.
Também para clarificar ainda mais o que se fala de Deus, o problema não está
restrito a um (im)possível sadismo, o que jamais poderemos falar é que Deus
anda a manipular a dor e o sofrimento para conseguir a sua glória, justiça e
lei.
Infelizmente por trás de tudo está, claramente uma
determinada visão do pecado, que se veio formando na linguagem da cultura
cristã, realizada principalmente na baixa Idade Média, e que marcou o rumo do
cristianismo, alterando-o mesmo para cristandade, em que o ponto da
justificação da guerra (santa), era acima de tudo um Deus Justiceiro, no
sentido cruel da palavra. Isto como sabemos levou a consequências práticas
enormes, e que ainda se fazem sentir na sociedade.
C.) Não
é o sofrimento que agrada a Deus, mas o sofrimento existe.
A soteriologia, é insistentemente passada dando a “crer” que
tudo assenta na imagem final que o sacrifício é redentor, olhando para cruz
parte-se para a dor como redenção. A partir desta deturpação, entramos na
viagem (extasy) da análise psicológica de Deus em que Ele é moldado ao nosso
interesse, tanto para bem como para mal.
A revelação de Deus, está assente em Jesus..., todos podemos
inventar um “cristo” que nos agrade e que justifique as nossas ações, agora o
que já é difícil confrontarmo-nos com o Jesus da história.
A colocação de uma matriz sacrificial como ação premeditada de Deus, leva por
um lado, a que a liberdade (que tanto falamos) não exista. Por outro abre-se a
possibilidade para o absurdo , ou seja, a de um deus que faz preferências tanto
de género como de outros aspectos, em deus não ame a todos da mesma forma.
Tantas vezes me questiono, afinal que deus é este em que
“acreditamos”?
Não há na realidade motivos teológicos para conceber um Deus
desta forma, o sofrimento humano não tem para Deus nenhum valor compensatório
nem reparador, nem constitui para Ele qualquer prazer, nem experiência
jurídica.
A crucifixão, ponto
central em toda esta problemática, tem em si mal entendidos que tentarei expor.
O escândalo da morte de Jesus (cf. 1 Cor 1,23) é ainda algo
presente entre nós, custa-nos falar da morte de Jesus. Jesus (que é para nós
encarnação de Deus), não morreu de forma biologicamente natural, Jesus foi
executado, Deus foi executado.
O amor gratuito de Deus, ou se quisermos o amor imerecido de
Deus, dado totalmente em Jesus, aquilo a que é chamado o “amor louco de Deus”.
Reparemos que enquanto cristãos dizemos “morte do Senhor” e evitamos dizer
“execução do Senhor”, falamos da cruz e evitamos falar em crucifixão, no
entanto é precisamente isso que existe no calvário.
Jesus não busca cruzes, nunca foi sua intenção quer sofrer.
A crucifixão não é um ato suicida de Jesus, neste acontecimento não há um
sacrifício para satisfação do Pai, é pois necessário separa o que tem que ser
separado.
Muitos entendem a morte de Jesus na cruz, como uma espécie
de negociação entre Deus Pai e seu Filho Jesus. Assim o Pai justamente ofendido
pelos pecados dos homens exige para salvar a humanidade uma reparação
impossível de lha darmos e desta forma o Seu filho entregou a vida por nós.
Pois bem aqui surge uma ideia medieval do reparação do mal. O sacrifício era
medido não somente pelo crime em si, mas principalmente em relação a quem foi
praticado. Desta forma sendo Deus infinito obrigaria uma punição infinita, no
entanto o homem ao ser finito jamais o conseguiria pagar na vida, assim mesmo
após a morte estaria para sempre condenado ao inferno, a salvação procedente da
graça de Deus viria não como uma natureza de Deus, mas como um satisfação
sacrificial perante Deus, em que Deus dava a graça devido a se satisfazer com o
sacrifício da punição.
No entanto a visão de que Deus exige para a salvação uma
reparação, é totalmente incompatível do ponto de vista teológico, não há (nem
sequer nas parábolas) uma relação direta a esse deus que busca sacrifícios.
Jesus não foi dado ao sacrifício, ele aceitou o sacrifício, não como razão de
satisfação ao Pai, mas como exemplo para os homens, no exemplo de levar a sua
verdade até ao extremo, sem levantar a revolta destrutiva de todos, mas
enquanto prova que jamais a glória se atinge no uso da brutalidade da vingança.
A ressurreição espelha isto mesmo, o sacrifício não está em expressões
destrutivas, mas sim no acolher a palavra, o sacrifício está na prática
concreta da palavra, o “logos” é assim assumido e vivido em plenitude pelo
homem, um pouco como o conceito grego com a virtude, com a razão, com o
“logos”.
A gratuidade de Deus, está na mesma aceitação da vontade
humana, se tal não fosse Deus não seria o amor puro, mas o negocio perfeito, já
que a salvação estava remetida a uma troca, a um saldar de divida. Se tal fosse
assim onde está a Boa Nova?!
Não busquemos o cordeio expiatório, alguém que carrega o mal sozinho...
Esta mania de buscarmos sempre o culpado é algo que nos acompanha na vida e na história ... ao contrário do que muitos apregoam: não é Deus o
sádico, não é o Pai do sofrimento, nem o tal que nada faz; somos nós que usamos o sadismo
contra os outros, impondo o sofrimento aos inocentes, e no fim a culpa é de
Deus. Nós matamos mas Deus é que é o culpado por não fazer nada, nós destruímos
o nosso planeta, mas Deus é que é o culpado por não ter evitado o ciclone, nós
é que estamos descansados em casa no nosso conforto em frente a um computador
construído na Ásia por crianças, mas Deus é que é o culpado por não evitar o
aproveitamento de uns sobre os outros.
Afinal temos um novo cordeiro, ou melhor o cordeiro é o mesmo, o “bode
expiatório” não mudou, é Deus. Deus é o culpado dos excessos religiosos, no
entanto se não existissem religiões os excesso viriam de outros quadrante, a
religião é uma expressão humana da compreensão esta faz do divino (de Deus),
daí que as religiões estão completamente ligadas às culturas e tradições (mesmo
seculares) dos povos, mais até que o próprio exercício teológico? O homem é o
mesmo, não é o facto de não existir Deus que nos iria mudar, inventariamos
novas justificações para a implementação do sofrimento, ou será que a história
também não mostrou e não mostra?!
Pontos de clarificação:
. na Carta aos Hebreus, quando Paulo aborda a crucifixão a
partir do sacrifício, está a referir esta aceitação, é importante não inventar
metafísica onde ela não encaixa.
. na literatura dos primeiros cristãos (literatura
neotestamentária) o “Pai do Céu” nunca aparece como “alguém” que exige
previamente o sacrifício, a destruição, o sangue, a vida, para sua honra para
desta forma, depois de satisfeito, perdoar. É precisamente o contrário, o Pai
amou tanto o mundo que enviou o Seu Filho abrindo-nos a compreensão plena de
que a salvação é sempre a natureza de Deus.
. Jesus (o Filho) nunca aparece (na tradição sinóptica,
João, etc.) a influenciar o Pai a partir do seu sofrimento. Jesus jamais
negoceia o que quer que seja para obter uma atitude mais benévola. Jesus o que
clama é amor, jamais coloca Deus contra a parede, o se coloca na posição de se
dar em sacrifício para agradar aos caprichos do Pai.
Não vou entrar agora numa analise da cruz, no sentido de
quem a quis e porquê...
Vou terminar abordando o ponto em que se pode questionar
esta análise.
“Se alguém
quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me.”
Mc 8,34
“Se alguém quer
vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me.”
Lc 9,23
“Se alguém
quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e
siga-me”
Mt 16,24
O que é levar a Cruz?
A cruz não é a obrigação de seguir Jesus, ela é a
consequência de o seguir em verdade, sem desvirtuar a mensagem, incorporando a
palavra e fazendo dela ação.
O que Jesus quer dizer pode ser dito da seguinte forma: se
me queres seguir, prepara-te já que nunca será fácil, porque como o mundo está
vão encontrar a “crucifixão”.
. Nem toda a desgraça, nem todo o sofrimento (por si sempre
negativo) é uma cruz. Existem aqueles sofrimentos que são originados e
provocados pela nossa própria ação (pecado em sentido teológico), muitas vezes
na maneira insana de viver. Estes não são castigos merecidos, mas consequências
evitáveis. No fundo há todo um sofrimento inútil e supérfluo, esses deveríamos
de uma forma racional e óbvia evitá-los. Nem qualquer desgraça, nem qualquer
sofrimento é uma cruz.
. Na realidade cruz, crucifixão, é aquela dor e sofrimento
(etc.) que chegou à nossa vida como consequência do nosso seguir a Jesus.
A cruz não é o mal e o destino penoso da vida, mas sim o
sofrimento que resulta (ou pode resultar) unicamente pelo facto de estarmos
vinculados a Jesus. Na realidade seguir a Jesus não é buscar cruzes ou
sofrimentos, mas aceitar a “crucifixão” quando ela aparece.
Isto não se enquadra com uma pessoa que se vitimiza na
existência, mas aquela que vai na vida na busca de Jesus exibindo o seu
sofrimento enquanto parte integrante desta entrega.
Daí que é errado aquele jeito (aliás bem português), de se
não estamos mal, não podemos estar bem.
Infelizmente muitos procuram a “mortificação”, as cruzes,
como forma de expressar a sua fé. Tudo o que é ascética eu valorizo, agora
buscar cruzes para estarmos mais próximos de Cristo, não. Jesus não quis o
sofrimento para nada, os seus sinais são claros, ele veio para tirar o
sofrimento de quem sofria, de dar justiça a quem estava relegado à exclusão,
etc.
Tudo isto Jesus fez, não negando ao Pai “bateu-se” por implementar uma forma
renovada de convivência (Reino de Deus), e com isto obteve as consequências,
não fugindo delas. Não foi o sangue que nos salvou, mas o amor gratuito que se
deu até ao sangue, não porque o quisesse mas porque nós quisemos.
E parece que ainda queremos!