Translate

domingo, 31 de agosto de 2014

A LÓGICA DO MUNDO E A LÓGICA DA CRUZ (resumo)



“Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me.”
Mc 8,34


“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me.”
Lc 9,23

“Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me”
Mt 16,24




O apego ao mundano retira-nos a capacidade de olhar para o mundo com os olhos do desprendimento, com os olhos cobertos pela luz do amor de Deus. O importante reside no encarar a nossa existência enquanto agentes concretos para a realização do Reino de Deus, propósito central da ação de Jesus, sem nos subjugar ao hedonismo que nos condena e nos leva a ficar remetidos ao pavor da finitude, passando assim,  ao lado o sentido eterno da vida.



Hoje, num mundo confuso e sem rumo, em que as injustiças reinam e a justiça tarda, torna-se fundamental nos posicionarmos, enquanto comunidade crente, como pessoas comprometidas com o valor de todos e de cada um, assumindo o mundo nas mãos para sermos todos com ele, sem nos vendermos às tentações, optando pela santidade...



A Palavra de Deus não se inventa, a sua vitalidade e interpelação é incrivelmente  atual, seria pois, bom que não existisse o receio de nos expormos a Ela, e através Dela encontrarmos o significado total da nossa relação amorosa com Deus. O “Ágape” de Deus é mais forte do que a própria morte, este Amor está na potência de nos olharmos, e assim contemplarmos luz que ilumina o mundo e a vida, porque a luz de Deus reside prioritariamente no olhar sincero, na limpidez com que Ele nos abarca a vida. Porque, e como refere Jean-Luc Marion, o dom explica-se por si mesmo, assim o amor só pode ser verdadeiramente sentido, se for praticado...



A cruz não é a obrigação para seguir a Jesus, ela é sim, a consequência de O seguir em verdade, sem desvirtuar a mensagem, incorporando a palavra e fazendo dela ação.
O que Jesus quer dizer pode ser dito da seguinte forma: “se me queres seguir, prepara-te já que nunca será fácil, porque como o mundo está vão encontrar a “crucifixão””.

A cruz não é o mal e o destino penoso da vida..., mas sim o sofrimento que resulta (ou pode resultar) unicamente pelo facto de estarmos vinculados a Jesus. Na realidade seguir a Jesus não é buscar cruzes ou sofrimentos, mas aceitar a “crucifixão” quando ela aparecer.
Isto não se enquadra com uma pessoa que se vitimiza na existência, mas aquela que vai na vida na busca de Jesus exibindo o seu sofrimento enquanto parte integrante desta entrega.
Daí que é errado aquele jeito (aliás bem português), de se não estamos mal, não podemos estar bem.



Infelizmente muitos procuram a “mortificação”, as cruzes, como forma de expressar a sua fé. Tudo o que é ascética eu valorizo, agora buscar cruzes para estarmos mais próximos de Cristo, não. Jesus não quis o sofrimento para nada, os seus sinais são claros, ele veio para tirar o sofrimento de quem sofria, de dar justiça a quem estava relegado à exclusão, etc.
Tudo isto Jesus fez, não negando ao Pai “bateu-se” por implementar uma forma renovada de convivência, e com isto obteve as consequências, não fugindo delas. Não foi o sangue que nos salvou, mas o amor gratuito que se deu até ao sangue, não porque o quisesse mas porque nós quisemos.



sábado, 30 de agosto de 2014

Filmes da minha vida: Paris, Texas (1984), Win Wenders

Começo hoje a colocar no blog uma lista nova:

Filmes da minha vida

o critério de publicação não obedece a qualquer ordenação, o critério é apenas o de publicar os filmes que mais me marcaram na vida....


"Paris, Texas" (1984), Win Wenders















sexta-feira, 29 de agosto de 2014

~ soltas -






SANTO AGOSTINHO

Abordar S. Agostinho é abordar um dos maiores pensadores do Cristianismo de sempre. Ele marcou de forma profunda a civilização ocidental, e é sem dúvida a “personificação plena do sentido da redenção”. Durante a sua busca pela verdade atravessou uma “peregrinação interior” a que ninguém poderá ficar indiferente. Influenciou como nenhum outro o sentido teológico e religioso ocidentais, muitos consideram-no como o “pai do paradigma medieval”, com ele dá-se a transição do paradigma helénico típica da Igreja primitiva, para o novo paradigma da latinidade medieval.

Durante a história muitos elogios têm sido feitos à figura de S. Agostinho, Hans Von Campenhausem, historiador protestante refere-se a ele do seguinte modo: “Agostinho é o único padre da Igreja a quem continua a ser reconhecido autoridade espiritual. Pagãos e Cristãos, filósofos e teólogos, sem distinção de correntes e confissões, todos se ocupam dos seus escritos e todos se confrontam com a sua pessoa. Agostinho exerce, simultaneamente, uma influência directa sobre a Igreja Ocidental, cuja tradição assimila, consciente ou inconscientemente, a sua teologia, e através desta, sobre a cultura, em termos globais, com maiores ou menores alterações ou interrupções… Agostinho é um génio, é o único padre da Igreja que pode reclamar o título atribuído pela modernidade às pessoas célebres”.
Realmente a sua importância é fundamental, a sua influência é marcante, no entanto e ao analisar S. Agostinho temos de ver os pontos verdadeiramente determinantes, mas também não devemos deixar de analisar aquilo que está sujeito à crítica. Nunca, mas mesmo nunca nos poderemos esquecer que S. Agostinho era um homem, e como tal falível, no entanto as suas falhas não tiram a importância ao brilhantismo das suas enormes virtudes assentes numa grande profundidade espiritual que se denotam na sua inspiradora doutrina.

A partir de S. Agostinho a teologia ganhou uma nova configuração paradigmática, ele que era originariamente mundano e mesmo polémico, veio a revelar-se como um cristão apaixonado.

S. Agostinho procurou conciliar a fé cristã com o pensamento neoplatónico, a compreensão bíblica de Deus com a compreensão neoplatónica. A sua estrutura de pensamento teológico mostrou que não deve existir um conflito entre a fé e a razão, ou seja, a teologia é um discurso reflexivo ou argumentativo acerca de Deus. Não se preocupou de usar várias teorias de diferentes correntes filosóficas, quer conservadoras quer inovadoras. O sentido espiritual sempre foi uma chave em toda a sua abordagem, para ele é Deus que se encontra no centro de toda a teologia, esse Deus que se relevou no seu “logos”, através do Seu Filho. Assim e a partir desta noção a alma espiritual, que se encontra na posse do corpo, reconhece em Cristo o caminho para a ascensão para Deus. Só através de Cristo se chega realmente a Deus, porque Cristo é o próprio Deus encarnado, um Deus que nos foi mostrado e revelado, Ele apresenta-se como um dom para toda a humanidade, no livro “Confissões” chega mesmo a afirmar: “Criaste-nos para Ti e o nosso coração está inquieto até voltar a descansar em Ti”., para ele a religião é uma questão de coração e não apenas uma forma cultural, ou de comunidade; a religião é a busca da verdade, e essa verdade tem apenas uma única entidade: Deus.

O seu carácter pessoal, apresentado na sua forma de escrita, faz com que nos apareça como algo ao qual estamos próximos, o seu pensamento atinge-nos no íntimo, todos temos elementos em que nos podemos rever em S. Agostinho. Mesmo que em certos pontos possamos observar um certo pensamento “radical”, ele é na realidade um de nós, com uma diferença, que a meu ver é essencial: S. Agostinho buscou a verdade e o conhecimento a partir da essência da busca de Deus, e isto não o fez em nada desligar-se ou criticar a Igreja, antes pelo contrário, S. Agostinho que chegou a bispo católico. Viu a Igreja como o ponto essencial nessa caminhada em busca do Senhor, aliás a sua grande missão e ideal de vida foi sempre este.

S. Agostinho nasceu em África, numa província romana chamada Numídia, actual extremo norte da Argélia. O seu nome era Aurelius Augustinus e a sua cidade era Tagaste – actual Souk Ahras. Quando ele nasceu, no ano de 354, o imperador Constantino já tinha falecido havia duas décadas. O seu pai Patricius era pagão e trabalhava como funcionário do estado, já a sua mãe Mónica (Sta. Mónica) era cristã, tendo exercido grande influência na sua vida e na sua conversão. S. Agostinho não chegou a ser baptizado, teve dois irmãos, Navígio e Perpétua (que mais tarde viria a tornar-se religiosa), o seu pai, embora falecesse ainda cedo, proporcionou-lhe uma formação sólida. Para isso foi estudar para Cartago onde viria a desenvolver a retórica, o que constituiria a base fundamental para o exercício da advocacia ou para uma carreira política. Teve uma vida como qualquer outro jovem, tendo como objectivo o sucesso. Com 17 anos começa uma relação com uma mulher, vivendo mesmo com ela, o seu nome até hoje é um mistério, já que nunca o revelou, nem mesmo na sua autobiografia (“Confissões”) chegou a prenunciar o seu nome. Esta mulher viria a dar-lhe um filho ao fim de um ano, ainda antes de se tornar professor de retórica. Este filho por quem teve um grande amor, teve também um peso marcante na sua vida… A relação com esta mulher manteve-se por 13 anos até chegar ao rompimento. Não sabemos até que ponto esta mulher marcou a sua vida, no entanto nos seus últimos dias de vida, no mais profundo isolamento, como de penitencia se tratasse, talvez esta mulher tenha estado no seu pensamento, viver 13 anos com uma mulher que lhe deu um filho deixa sempre marcas (talvez a ocultação do seu nome tenha sido a prova da sua importância, demonstrando deste modo um sinal de respeito, que manteve até ao fim dos seus dias).

Esta busca pelo sentido pleno da vida mais tarde iria operar uma viragem definitiva na sua vida, no entanto este caminho levou-o a passar por diversas conversões, no fundo ele fez uma peregrinação espiritual profunda.

Na sua busca pelo conhecimento, Cícero (“Hortensius”) teve grande peso em todo o seu processo, no entanto esta filosofia era “pouco religiosa para a sua sensibilidade”. Isso fez com que passasse para a situação de “ouvinte” do maniqueísmo dualista, de acordo com o qual o mal (em que a sexualidade se inseria) se explicava num paralelo ao principio do bem, isto é, Deus. Logo os “eleitos” viveriam em continência. Após o maniqueísmo – que ao fim de nove anos, acabaria como uma mitologia fantástica e pouco filosófica – S. Agostinho enquadrou o seu pensamento voltado para os cepticismos dos académicos.

A grande e decisiva conversão de S. Agostinho tem início aos 30 anos de idade, no ano de 383, na Europa. Em Milão, na altura residência imperial, S. Agostinho era professor de retórica política, aí conheceu uma jovem de 12 anos idade, pertencente a uma das melhores famílias. Esta jovem foi encontrada pela sua mãe, que havia viajado com ele, e que viu nela uma companheira que estaria à altura do futuro seu promissor. A companheira e mãe do seu filho, devido a isto, decidiu, a partir desse momento, fazer “voto de castidade” e regressou a África, onde viveu, provavelmente como viúva, sob a protecção da comunidade cristã.
S. Agostinho, contudo, desconsolado procurou consolo junto de uma outra mulher, sem encontrar, no entanto, uma satisfação espiritual.

Foi exactamente durante este período de sofrimento, que travou conhecimento com um dos mais brilhantes membros do Cristianismo, o bispo Ambrósio. Ambrósio era famoso pelas suas brilhantes pregações, influenciado por Orígenes (que ainda não tinha caído em desgraça na Igreja oriental) os seus discursos eram populares. Este contacto foi sem dúvida marcante para o futuro de S. Agostinho, a partir deste momento fica verdadeiramente cativado por aquele homem, tornando-se num grande apaixonado pelo seu discurso. Para o jovem S. Agostinho o Cristianismo abre-se agora como uma luz para a razão da sua própria existência.
Graças a Ambrósio e à sua grande ligação com o neoplatonísmo, S. Agostinho supera o cepticismo, e encontra definitivamente uma forma de acesso ao verdadeiro mundo espiritual. Na mais profunda alegria, no ano de 386 (tinha então 33 anos), S. Agostinho converte-se de forma definitiva, deixando para trás a vida mundana com hábitos hedonistas. Começa então a viver uma verdadeira vida cristã num espírito de renúncia e de ascese.

Após dez anos, nas “ Confissões”, S. Agostinho, baseando-se nas cartas paulinas, refere: “Como de dia, andamos decentemente, não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes, mas vestidos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne”. A partir deste momento faz uma opção plena pela castidade, optando por uma vida solitária não tendo qualquer relacionamento íntimo.
O próprio bispo Ambrósio faria o seu baptismo juntamente com o filho – Adeodato - . Aliás Adeodato, por quem nutria um grande amor, viria a falecer pouco tempo após o baptismo, mais precisamente na vigília pascal de 387. Esta morte prematura fê-lo sofrer de uma forma profunda, a partir desse acontecimento, jamais S. Agostinho mencionou a mãe do seu filho!

Após este trágico acontecimento, viria a tornar-se monge, vivendo uma vida comum “vita communis”, primeiro em Milão e um ano mais tarde na sua cidade natal Tagaste.
A sua mãe S. Mónica, vem também ela a falecer, aos 56 anos, a caminho de Óstia. Ela foi uma fonte de inspiração na busca da sua verdadeira fé, S. Agostinho considerava-a mesmo como a intermediária entre ele e Deus. Antes da sua partida, S. Agostinho e Sta. Mónica, conforme o relato nas “Confissões”, alcançaram o transcendente, que segundo o próprio foi obra dos “secretos desígnios Dele” e que relata do seguinte modo: “Enquanto assim falávamos, desejosos pela sabedoria, atingimo-la momentaneamente, num ímpeto do nosso coração”. Uma semana após este belo acontecimento, Sta. Mónica faleceria. Foi sepultada na Igreja de Sta. Áurea em Hóstia, mais tarde (1430) os seus restos mortais foram descobertos e transladados para Roma, primeiro para a Igreja de S. Tritão e mais tarde para a Igreja a ela dedicada – Igreja de Sta. Mónica.

A partir deste momento e depois de um período de busca e encontro com o sentido mais profundo da essência, mas também de perca daqueles que mais amava (mãe e filho), S. Agostinho viveu numa profunda renúncia de bens pessoais em conjunto com companheiros animados pelos mesmos sentimentos, numa vida dedicada ao estudo da Bíblia e da Filosofia.

Após três anos, em que escreve obras contra o cepticismo e o maniqueísmo, ocorreu uma nova mudança na sua vida. Durante uma visita à cidade portuária de Hippo Regius (actual Bône/Annaba, na Argélia), que na altura era a segunda mais importante logo a seguir a Cartago, S. Agostinho, que já era relativamente célebre, é reconhecido pelos fiéis numa Igreja, estes arrastam-no para o coro, perante o velho bispo Valério (grego), fazendo com que este o ordenasse presbítero no lugar de outro candidato. Valério acedeu, e S. Agostinho acabou por aceitar a vontade dos fieis, mesmo contra os seus interesses pessoais.
Assim aos 36 anos de idade, S. Agostinho foi ordenado presbítero, o seu prestígio e sabedoria fez com que apenas cinco anos mais tarde, em 395, fosse ordenado bispo auxiliar e, depois, sucessor do bispo de Hipona, que fora assassinado pouco tempo depois de S. Agostinho se ter tornado bispo.
Esta mudança teve uma importância fundamental na sua vida, mas teve também uma relevância profunda para a própria Igreja, tanto ao nível da política eclesiástica como para o próprio futuro da própria Teologia.

Na altura em que S. Agostinho foi bispo era habitual o casamento dos bispos.

Com uma actividade intensa, deixou a contemplação para um plano secundário. Mesmo assim continuou a fazer as suas interpretações das Escrituras, como se pode comprovar nos seus minuciosos comentários do livro do Génese, dos Salmos, do Sermão da Montanha e do Evangelho de S. João.

No entanto a sua Teologia foi influenciada por duas crises, que se abateram sobre a história da Igreja.

A primeira crise, já comentada atrás, foi a “crise donatista”. Esta oposição iria ter uma forte consequência no que diz respeito ao aspecto institucional e hierárquico da Igreja. Esta crise teve como início o facto de a Igreja Católica, no sec. IV, ter-se tornado numa Igreja de multidões, à escala universal. No entanto, precisamente no Norte de África, havia muitos círculos que ainda se lembravam dos tempos de martírio e da disciplina rigorosa, assim como a compreensão mais pneumática da Igreja e dos seus sacramentos, de acordo com Tertuliano e Cipriano. Estes gregos consideravam que os sacramentos e ordenações dispensados por bispos e presbíteros indignos, isto é, que tinham “se escondido” durante a perseguição aos cristãos, não gozavam da acção do Espírito Santo e, portanto, seriam inválidos. É importante salientar que 100 anos antes, devido à mesma razão, chegou-se a uma situação de cisma com os rigoristas, que acusavam a grande Igreja de laxismo, isto passou-se ainda antes da viragem influenciada por Constantino.
Realmente e após esta viragem, a maioria dos bispos norte-africanos pertenciam aos rigoristas, conhecidos então por donatistas, de acordo com o nome do seu líder, o bispo Donato (falecido em 355), que foi bispo em Cartago (313-347). Eles consideravam-se como fazendo parte de uma Igreja sem mancha, pura, santa, cujos bispos e presbíteros eram os únicos que possuíam o Espírito Santo. Esta corrente considerava mesmo que somente eles eram os únicos que podiam ministrar os sacramentos. O filho de Constantino, Constâncio, procurou retrair o donatismo recorrendo à violência, esta atitude fez com que surgissem no seio da Igreja surgissem conflitos a que se juntaram descontentamentos e mesmo sentimentos anti-romanos por parte de camponeses pérsico-berberes do Norte de África, que se sentiam espoliados pela economia de Roma.

Na altura em que S. Agostinho era bispo, este levantamento social já se havia dissipado, no entanto a tensão no seio da Igreja ainda era bem actual e visível. Acontece então um facto importante, a Igreja perseguida iria tornar-se Igreja perseguidora.

Após a Igreja católica ter sido declarada religião de estado pelo imperador Teodósio e de ter sido estabelecido a ortodoxia, o seu sucessor no Ocidente, o imperador Honório – decretou o regresso obrigatório dos donatistas à Igreja Católica, quem não o fizesse estaria condenado ao exílio.
Esta Igreja Católica, agora reconhecida pelo estado, era a Igreja que S. Agostinho amava e admirava. Aliás ele próprio afirmou que não teria acreditado no Evangelho se a autoridade da Igreja Católica (que, como já vimos anteriormente, deveria ser Igreja de Amor, já que provinha do dom de Deus, não o tivesse orientado nesse sentido. Para ele era a Igreja Católica era a chave essencial na busca de Deus, e sem Ela o encontro não poderia dar-se.
Esta “submissão” do indivíduo à Igreja enquanto instituição, como dispensadora da salvação, dos meios da graça, é visto por alguns pensadores como um traço nítido da realidade do Cristianismo latino.
No entanto, e na verdade, para S. Agostinho esta autoridade da Igreja Católica provinha de “cima”, Ela apenas teria sentido se fosse vista como uma verdadeira acção de Deus na Terra. Para ele a unidade da Igreja era o seu grande desejo, como tal esta quebra da unidade da Igreja Africana era algo que o torturava, já que Ela teria de ser Una, Santa e Católica.


Para S. Agostinho a Igreja é a Igreja dos santos, dos predestinados, dos redimidos, uma Igreja contida na Igreja visível, mas de uma forma invisível aos olhos humanos. Ela teria de estar virada para a luz, para a pureza do Criador que se deu a ver aos nossos olhos na imagem de Jesus Cristo. Só uma Igreja virada para a Trindade (Pai -Filho - Espírito Santo) é que tem um poder de salvítico, já que provém da fonte da Salvação, o próprio Deus. Desta forma o importante é aquilo que Deus opera em Cristo, não aquilo que um bispo, ou padre fazem. Os sacramentos tornam-se assim válidos, independentemente da dignidade daquele que os dispensa, desde que sejam dispensados conforme a ordem e a intenção da Igreja.
“Ex opere operato”, como virá a ser dito na Idade Média: um sacramento é válido quando é correctamente administrado. 


Sem dúvida que S. Agostinho forneceu à Teologia ocidental categorias, soluções e formulas de acesso a uma Eclesiologia e a uma Sacramentalogia pormenorizados: concepção de Igreja visível e de Igreja invisível, critérios para o conhecimento da unidade, santidade audível (“vertbum visible”); distinção entre o dispensador principal (Cristo) dos sacramentos e o dispensador instrumental (bispo, presbítero) e, consequentemente, validade dos próprios sacramentos.
Mas com os donatistas não existiu qualquer hipótese de entendimento, a situação chegou mesmo a agravar-se, existindo o uso da violência pelas duas partes. No ano de 411, em Cartago deu-se um encontro entre as duas facções, no qual participaram 286 católicos e 279 donatistas. A argumentação de S. Agostinho impôs-se, mas acabou por ser um comissário imperial a fazer impor as prescrições estatais através da força, segundo historiadores, esta decisão já estava tomada mesmo antes do início da disputa. Era “necessário” recorrer à violência e ao derramamento de sangue para se alcançar o resultado esperado.
S. Agostinho, assim como outros bispos, nomeadamente Ambrósio e Gregório, não viram nesta atitude nada de anti-cristão! Estavam mesmo convencidos que o estado tinha total direito de agir contra os hereges.
Claro que nesta atitude S. Agostinho contrariou-se a si mesmo, uma Igreja feita “Caritas” em nada poderá estar ligada a qualquer conceito de violência, mesmo que estejamos perante inimigos, se a Igreja é o espelho da palavra de Jesus Cristo, deve ter coragem para enfrentar os seus inimigos sem que para tal faça uso da violência, a compaixão deverá ser sempre a resposta. Ter compaixão não é estar “cego” perante o erro, é combatê-la através da razão, através da Palavra do Senhor, e nunca através da violência, porque violência leva sempre a mais violência – “Jesus, porém, disse-lhe: “Guarda a espada na bainha. Pois todos os que usam a espada, pela espada morrerão.””(Mt. 26, 52). A salvação está sempre inserida no amor e na paz entre os homens, só assim nos podemos aproximar Dele. Quem usa a violência em nome de Deus, se diz que está a usa-la em amor está a mentir, e ao mesmo tempo a ofender profundamente a Deus. O conceito de destruição está ausenta do pensamento cristão, se alguém o tentar justificar está no erro e na mentira, no entanto deixemos este assunto em concreto para mais tarde.
Daí que esta justificação da violência vem contrariar a própria essência da doutrina de S. Agostinho, para ele o mistério da salvação está contida na própria Igreja, e esta só terá um poder salvítico se for realmente dom de Jesus Cristo, enfim se no fundo for instrumento concreto do amor e da justiça. Embora para S. Agostinho a unidade da Igreja fosse algo de fundamental para que a acção segundo a Palavra do Senhor, este pensamento para ser alcançado nunca poderá ser através da violência. Ainda hoje, e cada vez mais se nota que a união do Cristianismo é necessário, daí que o diálogo ecuménico seja o caminho para a tal união, na realidade ainda há muito a percorrer, mas sinceramente acredito que Jesus nos iluminará para chegarmos à verdadeira comunhão cristã.

Portanto o que é importante é aquilo que Deus opera em Cristo, e nesta ligação não existe qualquer conceito de violência. Deus que é amor também é justiça, no entanto nunca destruição e morte. Porque a justiça de Deus revela-se na misericórdia.

Inicialmente, as medidas coercivas adoptadas pelo estado chocaram S. Agostinho, aliás ele chegou mesmo a protestar contra a pena de morte, mas por fim, acabou por “justificar” teologicamente o recurso à violência contra os hereges e os cismáticos. A sua “justificação”, partiu das palavras de Jesus, na parábola do banquete: “Coge intrare”, na tradução latina, algo exacerbada, para a frase: “Obrigai (em vez de “convidar”) a entrar” aqueles que estão perdidos pelas vidas e encruzilhadas.

Deste modo o donatismo foi extinguido...
Perdeu os seus bispos, os seus templos e o apoio das classes superiores. A maioria dobrou-se à violência. Deste ponto de vista, os católicos “ganharam”. Mas o preço da “vitória” tinha sido demasiadamente caro. Alguns historiadores são actualmente da opinião que a conversão forçada dos donatistas conduziu ao colapso da Igreja Africana, tão orgulhosa de si mesma, desta forma, estas Igrejas, incluindo a de Cartago e a de Hipona, seriam esmagadas pelo Islão no Sec. VII, sem oferecerem qualquer resistência.
Contudo, nem a grande Igreja, nem o estado (naturalmente interessado na “unidade”) tinham conseguido eliminar completamente as Igrejas cismáticas e heréticas, que continuaram a surgir. Por seu lado, a argumentação fatídica de S. Agostinho, o bispo e o homem espiritual, tão competente e belo no discurso acerca de Deus e no amor aos outros, haveria de servir, ao longo de séculos, para legitimar teologicamente a conversão forçada, a Inquisição e a guerra contra todos aqueles que viriam a desviar-se da ortodoxia. Mais uma vez afirmo: a linha entre o bem e o mal, embora todos, à primeira vista, saibamos onde está, parece muitas vezes estar invisível durante as nossas vidas.
A missão da Igreja é mostrar a Páscoa do Senhor, a nossa missão claro que tem um aspecto importante assente na conversão, mas esta através de uma atitude em sintonia com a acção de Cristo, e nunca uma conversão forçada. O uso da violência (que seja física, quer seja social) é sempre algo que se afasta do conceito de Cristo, a nossa palavra claro que tem que ser firme e precisa, no entanto deverá ter sempre uma ligação com a nossa maior verdade, que é o amor, que aliás Jesus nos mostrou de uma forma extrema. Amar é estar com…, é fazer ver…, mas também é estar sempre do lado da misericórdia e do perdão, de uma forma corajosa e incessante.

Afirmar que S. Agostinho foi o primeiro inquisidor é um erro, Peter Brown autor de uma bibliografia de S. Agostinho, considerada por muitos como a mais completa e documentada, acerca deste aspecto a certa altura chega a comentar: “Na resposta aos seus opositores acérrimos, Agostinho elaborou a única justificação global que existe notícia, na Igreja Antiga, para o direito de submeter os não-católicos”. Certamente que não queria eliminar os não-católicos em Hipona, aliás onde o seu número era elevado, infelizmente, mais tarde, a inquisição viria a fazê-lo, ele na realidade só os queria converter. Por isso, afirmou de novo Peter Brown: “Agostinho pode bem ter sido o primeiro teórico da inquisição, no entanto, não estava em posição de se poder tomar como o primeiro inquisidor-mor”.

Notou-se que após a sua chegada a bispo, S. Agostinho (aliás como outros depois dele) inclinou-se mais do que anteriormente, para um pensamento institucionalista, deixando a sua vertente de brilhante pregador e interprete incansável das escrituras, infelizmente, para segundo plano. Muitas vezes deparamos com grandes pensadores, que com o passar dos anos, deixam de se debruçar na essência do seu pensamento mais puro, tornando-se mais ligados a outras questões e mesmo, em alguns casos, tornando-se de certo modo “extremistas”, levando mesmo a certos exageros conceptuais no seu pensamento.
Na realidade S. Agostinho começou nesta altura a ter uma atitude endurecida, impaciente e pessimista. Esta atitude está demonstrada através da crise que a Igreja católica passou, crise na qual ele, mais uma vez desempenhou um papel decisivo. Esta segunda crise ficou conhecida como a crise pelagianista. Ela contribuiu para a radicalizar e estreitar a visão agostiniana acerca do pecado e da graça. O eco deste conflito prolongar-se-ia, não apenas na Idade Média mas também na reforma protestante e no jansenísmo católico.

Pelágio, um inglês que se destacou pela sua ascese e pela sua sólida formação moralista, conhecido pelas suas posições firmes, exerceu influência sobre o laicado romano, entre o ano 400 e o ano 411. Foi um dos grandes opositores ao maniqueísmo e à imoralidade do paganismo, ainda bastante difundidos, assim como o laxismo dos pseudocristãos das classes abastadas de Roma. Para ele, a responsabilidade pessoal e as obras eram decisivas. Evidentemente que Pelágio conhecia muito bem a necessidade da graça de Deus, mas compreendia-a actuante no ser humano, quase como um fortificante. Para Pelágio, a graça consistia no perdão dos pecados, o que, na sua perspectiva, consistia já num dom gratuito de Deus. A exortação moral e o exemplo de Jesus Cristo eram, segundo a sua óptica, também uma graça. No baptismo o homem é justificado, por causa da sua fé, e não por causa das obras ou do mérito. No entanto, uma vez cristão, o ser humano tem de usar a sua vontade livre – é esta a sua intuição principal – para trilhar o caminho que conduz à salvação, através da realização de boas obras, inspiradas nos mandamentos do Antigo Testamento e no exemplo Cristo Senhor.
Pelágio é consequente com os seus princípios, quando, ao contrário de S. Agostinho, recusa a ideia de um pecado original, transmitido de geração em geração.

Aqui e antes de continuar esta análise, gostaria de reflectir sobre alguns pontos que me parecem importantes. Uma das grandes consciências que um cristão deverá ter, é o de saber que na realidade é um pecador. Isto acontece porque ele sabe realmente o que é o pecado, e embora possa lutar contra ele, as suas ligações ao mundano fazem-no, sem dúvida nenhuma, entrar num combate contra a tentação, e nesta batalha a tentação muitas vezes é vencedora. O pecado está entrelaçado com todos nós, a nossa luta está em evitá-lo o mais possível durante a nossa vida, para desta forma levarmos uma vida em conformidade com a palavra de Jesus – “fonte de vida eterna”. A fuga da ideia de pecado retira-nos responsabilidades, tornando-nos seres desprovidos de senso perante a realidade. No entanto este pecado é cometido durante as nossas vidas e é realmente cometido por todos, estamos enquanto condição humana muitas vezes condenados a ele. Muitos questionam Deus acerca deste pecado, ou seja, se Deus é omnipotente, e verbo da origem, porquê que não destrói o pecado, tal como todos os males do mundo? A resposta está precisamente naquilo que Deus nos concedeu - a liberdade. Deus não nos é imposto imperativamente, mas surge-nos como caminho da verdade, sempre através de uma opção pessoal. Os seus sinais são para serem vistos, e através do Seu dom do Espírito Santo a sua revelação torna-se evidência. Deus é criação, não é a natureza, ou seja, nem toda a natureza é necessariamente Deus. Ele antecede-a, criou-a e deu-lhe sentido, mas também deu-lhe uma liberdade. Ao manifestar-se através do homem, o ser que Ele ama infinitamente, Deus mostrou o Seu rosto. Mas em Jesus Cristo, fica demonstrado também que Deus não nos retira a liberdade, antes pelo contrário, o seu desafio está mesmo nesta posição em que através da sua palavra e acção espera por uma atitude concreta de nós em direcção a Ele. Com isto não que dizer que não se manifeste de uma forma espantosa, no entanto a sua manifestação (que muitas vezes se realiza através de fenómenos naturais, Ele tem o poder de se manifestar na própria natureza, que se torna instrumento Dele) fica sempre ligada a uma forma de redenção e de mudança de paradigma de vida. O milagre acontece não como determinismo, mas como abertura a uma nova visão da nossa condição humana, como seres em que Deus se quer manifestar. Mas para que tal aconteça necessita da nossa adesão na mais pura liberdade. Muitas vezes também eu próprio questiono acerca da existência e manifestação do mal, mas se Deus acabasse com todo o mal no mundo, o homem iria modificar-se somente por isso? A modificação do ser humano depende da nossa atitude concreta, Deus está sempre ao nosso lado, no entanto só através de uma fé actuante no amor é que Deus se torna vivo em nós. Como já referi atrás a nossa grande busca está em revertermos a situação e encontrarmos uma vida em direcção ao Senhor, ligando para aquilo que realmente é relevante, fugindo ao pecado fácil e buscando sempre Cristo.

No entanto com isto não estou a referir que nascemos pecadores…
O que digo é que nascemos condenados a pecar…

O conceito de S. Agostinho do pecado original, baseia-se no pressuposto que todos nascemos providos de pecado, isto acontece pelo facto de termos sido concebidos a partir do prazer sexual, e na sua óptica onde existe prazer puramente carnal existe pecado. Claro que a luxúria carnal é condenável, agora quando se trata de um acto sexual provido de amor, não existe qualquer pecado inerente a tal acto. Mesmo que este acto parta de acção desprovida de amor, e apenas imbuída pelo prazer carnal, e se a partir dela surgir uma nova vida, ela como é óbvio vem pura e nunca com a “mancha do pecado”. O pecado é acima de tudo um acto pessoal, uma criança (por quem o próprio Jesus tinha um amor muito especial) - reparemos que o primeiro milagre de dar a vida a uma pessoa, foi dado a uma criança (cf. Mc. 5, 22-43) – elas são a pureza da existência. A criança é moldada durante a sua infância através da educação, logo este é o grande pilar da elaboração dos seus valores e de atitude perante o mundo. O ser humano quando nasce não vem com os pecados sobre si, isso seria uma condenação “à priori” ao qual não se é responsável, e em qualquer dos Evangelhos não se vislumbra qualquer afirmação peremptória sobre isto, mesmo quando existe uma associação à história de Adão, ela vem precisamente mostrar o que atrás comentei, nós somos sim sujeitos à tentação e muitas vezes não somos capazes de fugir, daí que pela nossa condição humana, e de liberdade (concedida por Jesus Cristo), leva-nos muitas vezes ao pecado.
O prazer pelo prazer trás consigo, como é óbvio, uma vertente em que se insere no pecado, agora o prazer quando se reveste de um contexto conjugal de amor fiel e sincero está na realidade totalmente isento qualquer conceito de pecado. Sempre que existe um amor verdadeiro, existe uma atitude que está ligada ao próprio conceito de Deus, quem não vê isto é sempre infeliz e insatisfeito, e mesmo segmentarista, porque “quem ama é quem ganha…”.
Vejo pecado numa vida em busca do prazer efémero, no tal prazer sem coração, não vejo pecado no prazer onde existe coração, numa relação de amor, sincera, leal e acima de tudo verdadeira. Deste modo torno a afirmar que não posso jamais conceber no meu pensamento, que uma criança assim que nasce já é pecadora (mesmo que tenha nascido fruto de uma relação desprovida de qualquer pensamento profundo), mesmo que seja fruto de uma atracção momentânea e efémera. Se me disserem que esta criança, durante a sua vida, está condenada ao pecado, isso aceito; agora que já é pecadora à nascença (provém do “pecado) isso a meu ver é rigorosamente falso, alias não encontro tal noção expressa explicitamente na “Palavra”, não fazendo mesmo parte do “espírito” dos Evangelhos.
Neste ponto discordo totalmente com S. Agostinho.
Uma criança é a maior preciosidade da criação humana, o Reino de Deus pertence-lhes, como referiu Jesus Cristo, elas são a mais pura e bela imagem da vida, e a vida é um grande dom de Deus, como tal, como é que o dom dos dons poderia ser um pecado?!

Como já referi atrás, quando me perguntam onde está Deus, eu digo sempre: está no sorriso de uma criança, mas também está no sofrimento dela, principalmente naquelas que todos os dias morrem de fome ou de falta de tratamento médico.
Irmãos, afinal tanto progresso, tanto bem-estar, e não somos capazes de criarmos as nossas crianças, então para que serve realmente o progresso?
Foi este o progresso que todos imaginamos?
Este sim é o maior pecado da humanidade, a nossa vergonha, o nosso verdadeiro inferno.

Ser vida é renascer em Cristo, mas para renascer em Cristo temos de nascer, e como é óbvio, nascer é a vida na sua origem, como tal a vida no seu início está sempre pura, desprovida de mal, uma vida no seu início busca um caminho em direcção do amor maternal que é único e soberbo, e onde existe amor assim existe manifestação de Deus. Uma das inquietações da actualidade que mais me preocupa está precisamente nesta imagem horrível de vermos que crianças que sofrem na sua mais pura inocência, sendo que muitas vezes a violência em de dentro dos seus próprios “lares”, não existe maior maldade do que esta. Todos os dias peço a Deus por essas crianças. Daí que o que aconteceu no início de 2009 no Brasil, com o caso de uma menina de apenas nove anos de idade que após ter sido violada pelo padrasto engravidou de gémeos, sendo que a Igreja, pela pessoa do Arcebispo de Olinda e Recife Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou a criança e os 15 médicos que fizeram o aborto (tratando-se como é óbvio de uma gravidez de extremo risco, sendo que a mãe tinha nove anos), mas mesma Igreja poupou o padrasto que a violou, este caso é verdadeiramente incompreensível, sendo que mais adiante iremos olhar mais de perto esta realidade. No entanto gostaria de deixar este comentário, esta criança (completamente inocente) sofreu três vezes, sofreu na atitude do padrasto, sofreu no aborto que cometeu e que irá estar sempre presente na sua vida e sofreu pela atitude da Igreja, que em vez de a acolher e de a ajudar a excomungou. Neste caso concreto o que a Igreja fez, é verdadeiramente incompreensível, sendo mesmo uma maldade que não tem qualificação, a não ser no pecado…

Sinceramente acho que S. Agostinho, devido ao seu passado pessoal, levou a radicalizar este conceito. O pecado está nos homens, o pecado não está numa criança. E mesmo quando se tornam pecadoras ainda muito jovens, a nós o devem. Portanto é no combate contra o pecado, orientando-nos para o Senhor, também as crianças nos acompanharão. As crianças são e serão sempre as primeiras vítimas dos nossos pecados.

Mas voltemos de novo à nossa base da análise entre S. Agostinho e Pelágio.

Na realidade e segundo Pelágio, todos nascem inocentes. Se se cai em pecado a culpa é pessoal. E é com base na bondade livre e pessoal que o ser humano se pode converter e começar a viver uma nova vida. A sua tendência era apenas em admitir a existência de uma tendência pecaminosa no ser humano, à semelhança do pecado de Adão. Pelágio recusa mesmo a visão de S. Agostinho – “Dá-nos o que nos ordenas e depois ordena aquilo que nos dás” – uma vez que considera esta atitude demasiadamente fácil.
Podemos pois considerar, que Pelágio, de certo modo, representava, ainda, o ideal sublime do passado, da ética estóica clássica. S. Agostinho, no entanto, defendia ideias que viriam a impor-se no futuro.

Quando Pelágio fugiu de Roma para o Norte de África, em consequência da invasão dos visigodos, não conseguiu entrar em contacto com S. Agostinho seguindo directamente para Jerusalém, no entanto deixou em Cartago o seu discípulo Coelestius. Em 411 Pelágio acabaria por ser excomungado, num sínodo que aconteceu em Cartago. Isto deveu-se a Coelestius ter tomado a iniciativa de difundir a teoria que negava a necessidade do baptismo das crianças para o perdão dos pecados. S. Agostinho enviou mesmo um mensageiro pessoal a Jesónimo, na Palestina, para que a condenação de Pelágio chegasse ao Oriente. Pelágio, que não queria entrar em polémicas, defendeu-se recorrendo ao argumento de que a graça era necessária às boas obras, mas que estas deveriam igualmente estar ligadas a um acto de vontade livre, pelo qual o ser mundano seria realmente responsável. Pelágio foi libertado da excomunhão em 415 por um sínodo de bispos orientais, para quem o livre arbítrio não constituía um produto dos escrúpulos típicos da mentalidade ocidental.
Esta decisão voltou a provocar indignação em África e levou a que S. Agostinho empreendesse novas diligências. Para ele, de facto, a “graça” era outra coisa, algo interior, e a convicção da “inocência dos recém-nascidos” revelava não só uma compreensão errada em relação a Deus, como a salvação poderia ser vista como supérflua. Assim S. Agostinho só podia considerar a resposta de Pelágio como uma desonestidade. Em consequência disto, foi convocado um sínodo geral dos bispos numídios, em Mileve, no ano de 416, o qual, em consequência com o de Cartago, denunciou Pelágio e Coelestius ao Papa Inocêncio I, que os excomungou a ambos.
No entanto Pelágio seria reabilitado em dois sínodos romanos, sendo novamente condenado noutro sínodo cartaginense. E foi, mais uma vez, graças à intervenção de S. Agostinho e dos seus companheiros, desta vez, junto do palácio imperial, que o Papa Zósimo, segundo certos historiadores, contra a vontade, mas pressionado por um édito imperial, condenou os dois representes desta teologia: Pelágio e Coelestius.
De facto S. Agostinho haveria de permanecer em conflito até ao fim dos seus dias com um defensor acérrimo da causa de Pelágio: o bispo Juliano. Na realidade Juliano voltou a questão ao contrário, acusando S. Agostinho de ser maniqueísta, por considerar o acto sexual – em si coisa positiva – como algo demoníaco, e os pecados como uma cilada do princípio do mal, isto é, da matéria decaída, do qual o ser humano só se libertaria através da abstenção do casamento e dos prazeres da carne.
Para S. Agostinho a doutrina rigorosa que ele defendia fazia parte da própria doutrina católica. No seu último escrito, que ele não teve a oportunidade de terminar, afirmou o seguinte: “Esta é a perspectiva católica, uma perspectiva que demonstra como Deus se revela mesmo nas maiores e múltiplas penas e tormentos das criancinhas”.

Efectivamente e a partir daqui existiu uma enorme diferença entre o Ocidente latino e o Oriente grego. S. Agostinho contestou sempre a ideia de que a sua doutrina era maniqueísta, no entanto, o que se passou, foi que ele se sentiu atingido pela doutrina de Pelágio como uma acusação do seu passado e da sua relação com a fé.
S. Agostinho mostrou, como nenhum outro na antiguidade, uma capacidade enorme de auto-reflexão analítica, e só na sua busca de Deus foi capaz de se converter ao Cristianismo. Aliás nas suas “Confissões” esta noção é posta de uma forma bem nítida. Na sua óptica o ser humano necessitava constantemente da graça, não apenas nos seus actos de vontade própria, mas, antes de mais, para apoiar a própria vontade, que em si mesma tem uma tendência fundamental para o mal e para o desvio. Daí que S. Agostinho tenha desenvolvido um contraponto para a teologia de Pelágio. Para ele a liberdade não era factor “per si” que levava o homem ao desvio e ao mal, o mal na realidade já estava connosco, e só através de Deus isso poderia ser alterado. Na sua doutrina de pensamento, o pecado estava ligado a todos nós já à nascença.

Já na antiguidade pagâ existia convicções de que o mal existente no mundo tinha origem num grande pecado, cujas consequências se abatiam sobre todo e qualquer ser humano. Contudo, S. Agostinho levou esta noção ao seu auge através da igualização do pecado. Segundo ele o homem encontra-se, desde o início, numa situação de corrupção, devido ao pecado de Adão, “no qual todos pecaram” (Rom. 5, 12).
“In quo”: esta foi a tradução na época que S. Agostinho utilizou e que levou a relacionar este “no qual” com Adão. No entanto no texto original, encontra-se, simplesmente, a expressão “Eph´ho” = porque (ou “em vista do qual”) todos pecaram.
S. Agostinho, a partir da Carta aos Romanos, deduziu a existência do pecado original, cometido por Adão, como também concluiu que existia um “pecado herdado”, que cada ser humano, ao nascer, já trás consigo, como se tratasse de uma herança. Pior ainda foi que, devido à sua existência pessoal no tocante à sexualidade e ao seu passado de influência maniqueísta, S. Agostinho – ao contrário de S. Paulo, que não escreveu uma só palavra sobre o assunto – associou esta transmissão do “pecado original” ao acto sexual e à avideza “carnal” (= egoísta), à concupiscência. De facto, S. Agostinho colocou a sexualidade no centro da natureza humana.
Em contradição com a maioria dos autores gregos e sírios, S. Agostinho centra-se de uma forma bem vincada na “vergonha” que o ser humano sente depois de ter cometido o primeiro pecado como sendo do tipo psicológico, isto é, com a vergonha ligada à sexualidade. Na sua visão, a corrupção da natureza humana, herança do pecado de Adão, manifesta-se especialmente na constante perturbação provocada pelo impulso sexual, que foge do controlo da vontade, particularmente no início e no ponto culminante do acto sexual, mas também durante o sono através dos próprios sonhos. Desta forma pode-se considerar que não é propriamente a sexualidade que constitui o mal (como consideravam os maniqueus), mas sim a perca de controlo. Daí que para ele a criança recém-nascida não é inocente, antes pelo contrário, é uma criança nascida do pecado e, se não quer condenar-se para sempre, deve libertar-se obrigatoriamente do “pecado original”. Este acto de libertação consiste unicamente no baptismo, que deve ser administrado, sem excepção, às crianças recém-nascidas.

Claro que actualmente este acto baptismal é vista na Igreja Católica como um acto essencialmente ligado à entrada e pertença à família da igreja, sendo que a partir daquele momento estarão preparados para viveram verdadeiramente segundo a doutrina de Jesus Cristo, devendo viver unidos, pela obediência ao Papa, Bispos e Sacerdotes. No entanto a função de um católico está também ligada à participação activa na “nossa Igreja”, assim Ela deverá ser vista não só como um instrumento para os homens, mas também como uma verdadeira pertença de todos, uns com os outros. A Igreja deverá ser o principal meio para nos levar ao encontro de Jesus, portando nunca poderá desprender-se dos anseios e angústias do homem, porque, ao representar o Messias Salvador na Terra, deverá também estar sempre disponível a sacrificar-se por nós, pelo bem de toda a humanidade, na luta contra a discriminação e a injustiça, no acolhimento aos rejeitados, dos pobres, dos perdidos na vida, dos pecadores…, enfim daqueles que mais precisam. Só desta forma Ela é verdadeiramente um dom de Deus, e a representante legítima de Nosso Senhor Jesus Cristo.

De acordo com a convicção de S. Agostinho não é a liberdade humana que motiva a graça de Deus.
Pelo contrário: a vontade humana é movida pela graça de Deus no sentido da liberdade. A graça não é portanto merecida, ela é oferecida. Só nesta graça divina é que o ser humano encontra a salvação. 
Este pensamento já abrange aquilo que de mais profundo tem a teologia. Este dom de Deus é necessário permanentemente ao homem, mas também exige uma cooperação total da sua parte. Isto não significa viver “casto” no sentido restrito da palavra, na minha óptica, a “castidade” aqui está ligada à nossa preservação espiritual e corporal através de uma dignidade inerente à própria vida, como dizia S. Paulo “o corpo é o templo do espírito”, daí que o corpo nunca se deverá se desprender da essência do ser. Embora o espírito se eleve ao Criador, ele durante a nossa vida terrena habita no nosso corpo, assim, saber cuidar do corpo, dignificando-o é também um dever cristão. Embora “a carne seja fraca”, ela faz realmente parte da nossa entidade, por outras palavras, ao cairmos na tentação carnal, o espírito é também afectado, não existe dois seres dentro do mesmo ser, espírito e corpo fazem parte da mesma entidade, apenas haverá a separação na morte, no entanto aquilo que realizarmos na carne irá também trazer as suas consequências no próprio espírito.
Mesmo aquele que tem uma deficiência física, merece ser dignificado pelo seu corpo, daí que para o cristianismo a deficiência física nunca poderá ser um obstáculo para que não se dignifique a vida de uma forma total. Manter castidade é notarmos que o corpo não é algo de “descartável”, o corpo não se vende nem se aluga, é necessário termos a noção que o corpo tem um sentido pleno de vida e que nunca o poderemos considerar que apenas fica na esfera do exterior, “dizendo que o que interessa é o interior”, frase aliás usada por muitos. Ele está connosco durante a nossa vida na terra e é realmente a morada do nosso espírito. Desmerecê-lo não é só atentarmos contra nós mesmos, mas também contra Deus. Deus que escolheu “mostrar-se” na figura humana – através de Jesus Cristo -, mostrou também, através do seu martírio, o que é a capacidade humana em desmerecer o próximo, mostrando desta forma o lado mais cruel do ser humano perante a ignorância da dignidade. A beleza não é um atentado contra Deus, o que não faz parte da palavra de Deus é a vaidade. A beleza está na dignificação que fazemos de nós mesmos e da nossa aparência, não nas jóias ou em vestuário caro, mas sim em termos a consciência que somos na realidade filhos de Deus - feitos “à sua imagem e semelhança”- e este alcance não está só no interior (buscando sempre o bem), mas também no exterior, na nossa auto-estima e na nossa dignificação corporal. Embora muitos duvidem e cheguem mesmo a por em causa: o homem é criatura escolhida por Deus. O processo evolutivo é concluído no Ser Humano, aliás Deus apresenta-nos isto de uma forma concreta, ao mostrar que a selecção natural (facto incontornável no processo evolutivo) aparece agora com uma nova visão, o Amor. Na essência do Cristianismo encontramos a misericórdia e a caridade como pontos essenciais no destino de salvação. Numa selecção natural, muitos seriam excluídos, no entanto Cristo mostrou-nos que o caminho está na unidade e no fim das descriminações (de qualquer ordem), só assim o homem é renovado, não no mais forte, mas naquele que tem a maior capacidade de amar.

Meus irmãos, muito haveria para expor e analisar acerca desta personagem incontornável para o Cristianismo. No entanto não é função deste livro fazer um aprofundamento acerca do pensamento de S. Agostinho, mesmo assim gostaria de deixar algumas considerações para finalizar este capítulo.

A grande preocupação de S. Agostinho é o destino da humanidade. Esta luta entre a “Civitas terrena” (sociedade terrena) e a “Civitas Dei” (sociedade divina) é para ele um ponto de profunda reflexão.
Jesus é para ele o Senhor da cidade de Deus em pessoa. Deus feito homem constitui de facto o ponto mais alto da história de todo o Universo. Desde então, a humanidade vive no sexto dia, o último, no qual terá o juízo final. A sua interpretação da história é feita sempre numa perspectiva teológica. O seu interesse está no plano de Deus, e não na evolução da humanidade.
Recorrendo à Bíblia e aos historiadores antigos, S. Agostinho juntamente com pormenores históricos apresenta um panorama adequado da história universal como confronto da fé e da descrença, da humildade e do orgulho, do amor e da ânsia de poder, da salvação e da condenação. De facto ele foi o primeiro a elaborar uma teologia da história, cuja influência se prolongou na teologia medieval e na “reforma”.

S. Agostinho, aos 75 anos, é atacado por uma febre, nesta altura teve a percepção de que o seu fim se aproximava. Mandou então pregar na parede do seu quarto os Salmos Expiatórios de David, e recolheu-se na mais profunda e solitária oração. Ele, que ao longo da sua vida sempre gostou da companhia dos amigos, agora preferia a solidão total. No dia 28 de Julho de 430, S. Agostinho faleceu. Apesar de alguns limites e excessos, ele foi, sem dúvida, um teólogo incomparável, considerado mesmo a grande figura espiritual e teóloga do Norte de África. Ainda hoje é um dos grandes influenciadores e inspiradores da Igreja actual, fazendo-nos reflectir permanentemente.

“a sétima época mundial, o oitavo dia, indiscutível e imprescindível, no qual Deus completará a obra da criação, a Igreja alcançará a meta da sua peregrinação e o mundo receberá o Senhor, a sétima época será o nosso Sábado (Sabbath), que não terminará ao fim do dia, mas será o oitavo dia eterno, o dia do Senhor, santificado através da ressurreição de Cristo, o dia do descanso eterno do espírito e do corpo. Então, seremos livres, e veremos,… veremos e amaremos e louvaremos. Vede será assim, no fim sem fim. Pois, qual é o nosso fim, senão alcançar o Reino que não tem fim?”

Cidade de Deus – S. Agostinho

Esta é a beleza singular e única da doutrina e do pensamento de S. Agostinho.



Por mais que possamos discordar em certos pontos, S. Agostinho é incomparável, o “Doutor da Igreja” é marcante e determinante para o aprofundamento da visão de Deus. A sua visão do amor, como verdadeiro dom de Deus, da Verdade feito homem, é a mais perfeita e a mais fascinante. S. Agostinho estará sempre presente no meu pensamento, ele é único e inesquecível.