A partir da visão agostiniana a pneumatologia
e espiritualidade estão conjugados. Estas realidades são não só estruturantes para o homem como também
para a própria Igreja. Ela inspirada pelo “sopro” divino de Deus deverá
espelhar Nele a sua acção em todas as suas vertentes.
É
importante referir que a latinidade católica tem fundamentos essências ligados
a S. Agostinho, já os nossos irmãos ortodoxos olham para esta acção de uma forma
um pouco distinta. Eles evitam denominar o termo “pneuma”, assim, segundo a sua
doutrina “pneuma” é o próprio Espírito Santo. Desta forma é o “nous” que se
liga com a presença activa do Espírito em nós. Podemos concluir, de uma forma
simplificada, que na ortodoxia o “nous” é a acção do Espírito de Deus no nosso
interior, sendo que este interage com o corpo e com a alma.
Este amor constante está também ligado ao
conceito de união.
“O pneuma não está onde se fala em nome
próprio, onde se busca a glória própria e solitária, é que desta forma, como é
óbvio, cria-se facções. O verdadeiro Espírito manifesta-se precisamente no
recordar e no unir.”
Para S.
Agostinho a palavra “amor”, que vem na Sagrada Escritura, tem um significado
bem específico: Espírito Santo. Desta forma por um lado, o “amor é Deus”, por
outro lado, “vem de Deus”, e juntando o alcance de Deus: “Deus” é “vindo de
Deus” isto significa que aquilo que conhecemos por “Deus de Deus”, quer
dizer Deus é a Verdade e a Vida: Luz da Luz, Deus Verdadeiro de Deus
Verdadeiro.
“Deus
de Deus” é a força que leva ao nascimento do novo homem a partir da acção do
Espírito, que está inserida na caridade.
Este
dom do Espírito Santo é visto por S. Agostinho nitidamente na conversa de Jesus
com a Samaritana (cf. Jo. 4,7-14), em que Ele através da água se revela com
dador da “Água Viva”. Para S. Agostinho Cristo é a fonte de “Água Viva”, existe
portanto uma verdadeira relação entre Cristologia e Pneumatologia. Assim cada
Cristão, através d´Ele, também se pode tornar fonte de Espírito.
S.
Agostinho acerca da relação entre Deus e Cristo conclui:
“Ele
não vem de Deus como nascido, mas sim como doado” (non quomodo natur, sed
quomod datus). “Não se chama Filho, porque nem nasceu como unigénito, nem foi
“feito”… como nós” (neque natus… neque factus). Deste modo a procedência de
Deus aparece da seguinte forma: nascido, doado, feito (natus, datus, factus).
Se a
essência do Filho é visto como “gerar”, a essência do Espírito Santo está no
“doar”. Deus é-nos concedido como um dom, é a partir deste dom que encontramos
a salvação. No entanto também nós somos chamados a sermos levados nos seus
braços para a salvação. O dom de Deus é portanto (e como referi atrás) o
próprio Deus, daí Ele ser o verdadeiro conteúdo da oração cristã. A oração
correcta não deve implorar uma coisa qualquer, ela deve implorar para que o
verdadeiro dom de Deus se manifeste na essência que é Ele próprio. Para S.
Agostinho isto está bem demonstrado no “Pai-Nosso” quando dizemos “o pão-nosso
de cada dia nos dai hoje”, Deus é portanto o “nosso pão”, mas este “nosso” está
posto como doado a nós, tal como o Espírito Santo e mesmo o próprio Jesus
Cristo. A Santíssima Trindade é a expressão da doação total de Deus, através do
Dele - que também nos foi doado - conseguimos alcançar e entender o Amor
permanente e eterno de Deus por nós.
“O amor (caritas), é que faz a separação
entre a esquerda e a direita (cf. Mt. 25).
O que ama está à direita, o que não ama
está remetido para a esquerda. Sem amor nada “de bom” é realmente bom.”
Para S.
Agostinho esta visão está assente de forma nítida em Paulo e Tiago. Eles são
uma referência essencial da fé operante no amor, para S. Tiago a fé tem mesmo a
capacidade de salvação, mas esta terá de ser inspirada pelo Espírito, porque a
fé que é própria até dos demónios, mas esta que não pode salvar (Tg. 2, 9). A
fé pode até existir mas não salva só por si, só através do amor posto na fé
(acção do Espírito Santo) é que alcançaremos a verdadeira salvação.
Esta é
sem dúvida uma conclusão importante e valida, não basta acreditar para que a
acção de Deus se concretize, sem a acção do dom do amor, através do Espírito
Santo a transcendência não se manifesta. Não basta “dizermos” que acreditamos
em Cristo, é necessário que este acreditar seja causa de adesão. Só desta forma
a fé leva a que sejamos contemplados pelas maravilhas do Senhor, no entanto
para encontramos o caminho na sua direcção muitas vezes implica renúncia de
estilos de vida às quais abraçamos como as “mais correctas”, e isto leva a que
nos falte a coragem, ficando o derradeiro passo sempre por dar.
Ao
lermos o Evangelho (e como já se abordou atrás) notamos que o próprio demónio
conhece bem quem é Jesus, daí que não basta sabermos quem é Jesus para que Ele
viva em nós. Para que tal aconteça temos de ter uma atitude firme no amor para
com Ele. A sede por Deus, é a sede do Amor, é no fundo estarmos sempre de
coração aberto para recebê-lo, e esta atitude é revelada através da relação que
temos perante os outros.
Jesus que é Deus deu a vida por nós, como
acto mais supremo de amor, nós estamos hoje aptos para dar o quê aos nossos
irmãos?
É nesta
“caritas” que se vê o cristão, e a partir deste ponto que se liga os
sacramentos a doutrina (Eclesiologia) à Pneumatologia.
Foi
pois com base nisto que se levantou o confronto de S. Agostinho com o
donatismo. Para ele os donatistas, que tinham os mesmos sacramentos que a
Igreja Católica, falharam. Para S. Agostinho os donatistas quebraram o amor, e
sem amor nunca se atinge a verdadeira salvação. A ideia de perfeição do
donatismo eleva-se à própria unidade, renunciando desta forma ao próprio amor. Para S. Agostinho a Igreja é Caritas. A
essência da Igreja deverá ser sempre conduzida pela fé, e esta fé terá de estar
sob o comando do amor. Como tal e analisando de uma forma mais profunda esta
noção, o amor não se insere em
descriminar, o amor está contido no unir (communio).
”Enquanto criatura espiritual, enquanto
corpo do Senhor edificado pelo “Pneuma”, que se torna corpo de Cristo, já que o
“Pneuma” torna os homens capazes do “communio”, assim enquanto criatura do
Espírito, a Igreja é o “dom” de Deus neste mundo, e este “dom” é amor”.
Um
cristão nunca poderá ser visto como pertencer a uma seita separada dos outros.
O Cristão tem de estar sempre ligado a todos (crentes e não crentes), com o
objectivo de levar a todos a Pascoa do Senhor. Esta ligação à comunidade
inteira terá de estar suportada na humildade e amor – temos de ser suporte e
esperança para todos que buscam o sentido para as suas vidas – pois caso
contrário ficará em falta o Espírito Santo, que é quem unifica. Nós cristãos
temos pois a obrigação de juntarmo-nos na verdadeira comunidade dos crentes. Desta
forma a afirmação “A Igreja é Caridade” não fica confinada a um âmbito
puramente dogmático-académico, mas remete para o dinamismo que edifica a
unidade que se demonstra na coesão mútua da Igreja. Desta forma para S.
Agostinho, o cisma é uma heresia pneumatológica, já que confronta o princípio
existencial. Esta virtude no pensamento de S. Agostinho, teve na sua execução
um carácter extremo, que mais tarde abordarei, no entanto a essência do
pensamento é fascinante e revestido de uma importância impar para todo o
pensamento do Cristianismo. A noção de amor que S. Agostinho tem acerca da
missão da Igreja, é algo que não se pode perder, o amor é a pedra basilar para
a Salvação do mundo, sem ele nada é possível.
É
importante salientar o seguinte, para S. Agostinho e também na linha do meu
pensamento pessoal, a caridade não está automaticamente ligada àqueles que
permanecem à Igreja, aliás esta noção é bem visível, o facto de se dizer que se
pertence à Igreja não significa que se esteja, à partida, imbuídos pelo dom da
caridade, a única certeza que podemos ter é que ao afastarmo-nos da Igreja,
afastamo-nos também do sentido profundo da caridade. Através da Igreja temos
uma via, que se utilizada no interior do ser humano, somos tocados pela
caridade: “quanto mais a pessoa é da Igreja, tanto mais tem o Espírito Santo”.
O sentido do Cristianismo está presente nesta denominação do espírito como
amor, aliás é aqui que assenta todo o significado da Trindade, ou seja, o
sentido de união acontece no amor – caridade.
Devido
às divergências entre a Igreja Católica e o donatismo, levou a que passassem de
pontos de vista diferentes ao nível verbal e conceptual, para a prática de
actos violentos. No início houve por parte dos donatistas uma acção de grande
violência contra a Igreja Católica, esta em resposta, agiu também com
violência. Para muitos aqui se lançaram os primeiros passos para uma inquisição
dura por parte da Igreja Católica…
Esta
ligação da Igreja e amor, por mais profunda e compreensível que seja, acarreta
também os seus perigos. Esta visão, se deturpada, poderá levar a restrições
perigosas. A Igreja vista como amor para ter uma expressão de verdade e de
ligação a Jesus Cristo, nunca poderá desligar-se do Espírito, esta ligação terá
estar presente não só enquanto existência concreta para os féis, como na sua
vertente institucional.
Irmãos, não basta afirmarmos que a Igreja é
Amor, ela tem de o ser na sua verdadeira forma, ou seja, através do Espírito
Santo. O próprio S. Agostinho para concretizar esta noção, levou
a pactuar com algumas práticas perigosas, que iram marcar a história da Igreja
da Idade Média e da Idade Moderna.
Como já
referi atrás, no final deste capítulo vou procurar aprofundar um pouco mais a
vida e pensamento de S. Agostinho, no entanto gostaria de referir o seguinte:
S. Agostinho é uma das figuras mais importantes na formação do pensamento
cristão, a sua acção foi, e é ainda hoje, uma grande referência inspiradora
para toda a Igreja, e também fonte de inspiração e força orientadora do meu
pensamento, no entanto, e na linha de grandes pensadores do Cristianismo, com o
passar dos anos as suas ideias tornaram-se mais radicais, caindo por vezes numa
certa contradição com a essência belíssima do seu pensamento. Infelizmente não
poderemos esquecer que ele com a sua posição mais radical, levou a que nunca se
opusesse a uma inquisição violenta, chegando mesmo a entendê-la e em certa
medida a apoiá-la. Devemos pois estar bem atentos quando abordamos a ligação
entre o homem e o divino, o risco entre o bem e o mal fica muitas vezes
confinado um “traço fino”, em que o calcamos sem termos de imediato uma
percepção concreta desta acção. Muitas vezes julgamos que estamos a actuar
segundo a Palavra do Senhor, mas se reflectirmos com atenção, estamos a impor
regras e preconceitos que desvirtuam a essência da Palavra, chegando mesmo a
contradizê-la, ou a tirarmos conclusões que efectivamente não existem no
Evangelho… Isto é um dos grandes perigos, e que para os quais teremos todos de
estar atentos. É importante denunciar sempre que tal aconteça, esta é uma
obrigação de todos os crentes perante a Igreja e perante a Verdade. É neste
ponto em que a comunidade cristã leiga poderá dar um contributo importante à
Igreja.
Só no
Amor é que o Senhor se revela como Verdade e Vida. Para aqueles que duvidam e
que chegam mesmo a por à prova a acção de Deus, alegando para isso as tragédias
que acontecem à humanidade fica esta pequena reflexão:
Deus
não é o responsável dos males que os homens comentem entre si. Jesus Cristo
manifestou como grande ensinamento: o respeito que deveremos ter pelo próximo é
igual ou maior àquele que damos a nós mesmos. A sua existência não assenta na
nossa posição de o pormos à prova, mas sim na nossa postura de o seguirmos em
fidelidade e amor, para deste modo alcançar a glória. Ninguém conhece Deus de
uma forma completa e total, no entanto sem caridade, nunca mas mesmo nunca
chegaremos a Ele, portanto se aderirmos de coração aberto à proposta de Deus
seremos tocados pela sua divindade, e em comunhão com todos em Jesus Cristo
encontraremos o caminho rumo à Vida Eterna. Só poderemos entender Deus se
entendermos Jesus, Ele que é a presença do Verbo feito carne, é também o
caminho da razão e da salvação. Ele que é Deus feito homem, indica-nos como
alcançar a salvação, segui-Lo é entendê-Lo, segui-Lo é no fundo estarmos no
caminho do encontro com a essência primeira e última de todos as coisas. Desta
forma o progresso científico, só tem ligado a si o desenvolvimento se tiver
como foco o homem em toda a sua totalidade. Daí que sem caridade nada se
alcança, só na caridade estaremos no caminho da verdade, que se expressa no
próprio Deus.
Claro
que ao concluir o sentido da Igreja enquanto instrumento do amor (caridade) e
salvadora, com isto não estou a afirmar que ela não tenha um caminho bem
definido, mas por outro também não me estou a referir a uma Igreja que “não
olhe para os lados” e que com isto se torne instrumento de intolerância. O
intolerante torna-se intolerável, e isso fará com que se desvie na essência da caridade
comandada pelo Espírito Santo e que lhe foi concedida como dom através de Jesus
Cristo. Tendo os “olhos” sempre focados em Jesus, a Igreja estará sempre no
caminho correcto, porque só através Dele a salvação e a verdade estará ao
alcance do homem. É assim que a Igreja deverá ser sempre…
A
Igreja terá de ter uma consciência que não se pode fechar no empirismo, ela que
administra os sacramentos e transmite a Palavra de Deus nunca poderá dividir-se
entre “Igreja de Espírito” e “Igreja instituição”.
Daí que
para S. Agostinho a busca do Espírito não poderá ser realizada a partir do
exterior, para ele ao fazer-se isto fica-se sem entender a obra da Pneuma: o
amor que une para o permanecer. O grande mistério cristológico liga-se à noção
que Cristo não é somente Aquele que ascende, mas é também Aquele que desceu.
Ele portanto está simultaneamente ao lado de Deus (que nos dá), e ao nosso lado
(que recebemos). Desta forma voltamos à Eclesiologia e à Cristologia: A Igreja
está ligada a Cristo como Aquele que desceu, ou seja, Ela deverá ser sempre a
continuação da humanidade de Jesus Cristo.
“Em todos os dons, é dado o dom – Espírito
Santo”.
Claro
que com esta afirmação S. Agostinho que referir que este dom está ligado sempre
a Jesus Cristo (demonstrado na Santíssima Trindade), portanto a meta final de
todos os dons chama-se: “Unidade”. Esta unidade deverá ter um carácter
constante e persistente, e a Igreja deverá ser o espelho concreto desta união.
Na sua eterna unidade com Deus, Jesus Cristo deu-nos o dom do Espírito Santo,
portanto o dom é também o próprio Jesus Cristo, a Trindade tem na realidade
esta forma de dom – Deus, Jesus e Espírito Santo. É neste permanecer na unidade
do amor, que através do Espírito Santo somos libertados.
Para S.
Agostinho, o cativeiro aprisionado, que antes impedia a construção, é o diabo,
ou seja, o diabo é o cativeiro, o exílio, o ser retirado de si mesmo, aquele
que se encontra no vazio, sem pátria – é exactamente nesta aparente liberdade
que estamos verdadeiramente exilados e presos. S. Agostinho nesta conclusão,
não se apoia apenas numa teoria dogmática ou filosófica, mas também a partir da
sua experiencia concreta de vida pessoal.
A
vitória está portanto no “regresso a
casa” (Lc. 15,11-32), edificando-a e tornando-a “Igreja”. A liberdade tem
aqui um sentido espiritual, que poderá colidir com o sentido actual. A
liberdade aqui está em tornar-se parte da casa, em ser-se inserido na sua
construção. Claro que temos aqui de ter uma noção que o conceito antigo de
liberdade estava ligado ao sentido de quem tem pátria é livre. No entanto ele
supera este conceito social de liberdade a partir da fé cristã: “a liberdade
está numa relação indissolúvel com a Verdade, que é a verdadeira pátria do
homem”.