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sábado, 28 de dezembro de 2013

Notícias: Vaticano News - Domingo da Sagrada Família

Reflexão para o Domingo da Sagrada Família

Cidade do Vaticano (RV) - Como é hoje a vida de uma família comum? Ela é constituída por um casal e um ou dois filhos. A mãe trabalha fora e possuem pouco tempo para se encontrar.
Muitas vezes acontecimentos na vida pessoal de cada um sucedem e não são colocados em comum, porque não possuem tempo ou não existe clima para isso.



Vaticano News
Pior quando surgem mágoas e elas não são trabalhadas, mas engolidas. A natureza, que pede vida de família, se sente violentada e, mais cedo ou mais tarde, essas mágoas, que não foram digeridas, voltam e aí temos situações profundamente dolorosas que provocam mágoas maiores e, muitas vezes, sem solução imediata.

Também é muito doloroso quando algum membro da família possui algo maravilhoso para partilhar e não recebe a devida atenção para isso, pior quando sua bela notícia é reduzida a algo corriqueiro, insignificante.


Aí vem em socorro da família a profecia de Isaías, proposta como primeira leitura da missa da noite de Natal: “O povo que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9, 1). O Senhor se encarna e se solidariza, redimindo-nos e nos devolvendo nossa dignidade de pessoas, de seres criados á sua imagem e semelhança.
A liturgia da festa da Sagrada Família traz, para a família do dia de hoje, a luz e a força para redescobrir e manter o caminho da felicidade.
A família de Nazaré tinha tudo para ser submissa aos caprichos de uma sociedade consumista, pós moderna e economicamente carente. Basta ler os relatos evangélicos da infância de Jesus e sobre sua família. Mas a presença de Deus, o Deus-Conosco em seu meio e sua fidelidade ao Amor de Deus, fizeram a diferença.


A primeira leitura, extraída do Livro do Eclesiástico, nos fala de que a misericórdia em todos os relacionamentos, mas principalmente para com os pais, está em referência a Deus que é o Pai por excelência. Honrar e respeitar os pais é prestar culto a Deus.
Também a Carta de São Paulo aos Colossenses, continua o tema da misericórdia nas relações familiares. “Tudo o que fizerdes, em palavras ou em obras, seja feito em nome do Senhor Jesus Cristo”, nos diz o Apóstolo.


Jesus, o Caminho, a Verdade, a Vida, o Amor nos ensina o verdadeiro caminho para o Pai, para a felicidade ainda neste mundo. Será necessário renunciar aos valores deste mundo, será necessário renunciar fazer dos filhos pessoas como nos pedem o elitismo e seus códigos. Será necessário que no relacionamento do casal seja priorizado o diálogo. Será necessário ver na simplicidade de vida e até na carência de certos bens, a presença do carinho de Deus que supre tudo aquilo que nossa carne valoriza.
Deixemos a luz de Deus entrar, iluminar e aquecer nossa vida. Ela nos revelará nossa submissão aos valores mundanos e, consequentemente explicará a causa de nossos sofrimentos. Veremos em que situação colocamos nosso coração, não na simplicidade do lar de Nazaré, mas no fausto do Palácio de Herodes.
(CAS)  


(Fonte: Vaticano News)

Vaticano News

AGIR EM COMPAIXÃO (1/2)



“Mas um samaritano, que ia viagem, chegou ao pé dele e,
vendo-o encheu-se de compaixão Aproximou-se, ligo-lhe
as feridas, deitando nele azeite e vinho, coloco-o sobre a
sua montada , levou-o para a estalagem e cuidou dele”
(Lc 10,34)


Perante uma atualidade a atravessar uma erupção, é necessário resgatar a compaixão enquanto pilar essência da ação política, libertando-a, deste modo, de uma certa concepção redutora, confinada apenas à esfera da moral retórica, e pouco usada na “praxis” política.


É  compaixão que reclama por justiça, que implora para a eliminação das causas geradoras de sofrimento. Este é um dos pontos, senão mesmo o único que se encontra totalmente impedido de se realizar prioritariamente nos “centros de poder”, diariamente somos “bombardeados” por notícias nas quais a força de um neo-liberalismo profundamente obcecado nos seus propósitos materialistas, age com todo o seu poder e influência dominadora para atingir os seus objetivos, nem que para tal “calque” nos mais fracos, numa cavalgada inesgotável pela ansia do proveito monetário.


Os centros de poder, eles próprios reféns, devido muitas vezes, à sua cumplicidade antecessora (da troca de favores), funcionam como agentes concretos de um mundo sem rosto, desprezando as “lágrimas” dos atingidos. Assim e para se mostrarem “limpos” usam a noção da compaixão restringida à pratica de beneficência social caritativa profundamente hipócrita, que mais não serve para se convencerem de que estão com a razão.

Para os cristãos torna-se cada vez mais essencial ter presente que quando Jesus se refere à compaixão, em ser compassivo, não o faz ligando-se às leis nem tão pouco a uma ordem social, a referencia incide totalmente em Deus. Seguir Jesus, enquanto caminho para o Pai, é viver numa permanente abertura à compaixão, é precisamente isto que nos torna mais humanos, e não outras conjeturas funcionalistas.

No Evangelho Jesus “grita” indignado contra o sofrimento dos inocentes, não podemos viver descansadamente ou mesmo fechados nos nossos problemas, perante a existência do sofrimento, jamais o podemos aceitar como normal ou fatalidade.  

O sofrimento dos inocentes não é minimamente aceitável, isto não pode deixar de estar presente na consciência cristã, do “ser cristão”.

O sofrimento tem que ser evitado de uma forma irrevogável (no sentido correto da palavra). Se algo inicial leva à consequência do sofrimento, então é o inicial que tem de ser alterado, sob pena de hipotecarmos, de uma forma brutal, a construção de um futuro mais humano e mais pacífico.


A compaixão que Jesus quer introduzir no mundo, é geradora de uma nova maneira de relacionar-nos  com o sofrimento do mundo. Mais do que tratados morais ou exortações religiosas, o que Jesus mostra a todos é a compaixão ilimitada Deus. O nosso equilíbrio assenta nos fundamentos da convivência humana.

Nos excluídos, nos últimos, nos pobres, nos que já perderam a esperança, é que reside a autoridade suprema, a Autoridade dos que Sofrem.







terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A Noite de Natal (Sophia de Mello Breyner Andresen)


O amigo


Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta. No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e mais complicada para o rei dos anões.
Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim.
E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha.
Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de Outubro.
Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta.
- Ah! – disse ela. E pensou: “Parece um amigo. É exactamente igual a um amigo.”
E do alto do muro chamou-o: - Bom dia!
O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu: - Bom dia! Ficaram os dois um momento calados. Depois Joana
perguntou: - Como é que te chamas? - Manuel – respondeu o garoto. - Eu chamo-me Joana. E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um
silêncio. Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto disse: - O teu jardim é muito bonito. - É, vem ver.
Joana desceu do muro e foi abrir o portão.
E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos. Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a horta. E chamou os cães para ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa da lenha onde dormia um gato. E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as flores.
- É lindo, é lindo – dizia o rapazinho gravemente.
- Aqui – disse Joana – é o cedro. É aqui que eu brinco. E sentaram-se sob a sombra redonda do cedro.
A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava voltas no ar.
Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a construir a casa do rei dos anões.
Brincaram assim durante muito tempo. Até que ao longe apitou uma fábrica.
- Meio-dia – disse o garoto -, tenho de me ir embora. - Onde é que tu moras? - Além nos pinhais. - É lá a tua casa?
- É, mas não é bem uma casa. - Então? - O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres.
A minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.
- Mas à noite onde é que dormes?
- O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também. - E onde é que brincas?
- Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.
- Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo.
E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro.
Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda do cedro. E foi assim que Joana encontrou um amigo.
Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.


A festa

Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.
E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.
Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.
Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior de uma taverna cheia de maravilhas e segredos. Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.
Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas.
Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes, tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.
Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário.



A estrela

Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas.
“Tenho medo”, pensou ela. Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.
Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante. O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais.
“Será possível que eu chegue até lá?”, pensou Joana. Mas continuou a caminhar.
Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca.
“Tenho frio”, pensou Joana. Mas continuou a caminhar.
À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até que ficou enorme.
Joana parou um instante no meio dos campos. “Para que lado ficará a cabana?”, pensou ela. E olhava em todas as direcções à procura de um rasto. Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não
havia rasto e à sua frente não havia rasto. “Como é que hei-de encontrar o caminho?”,
perguntava ela. E levantou a cabeça. Então viu que no céu, lentamente, uma estrela
caminhava. “Esta estrela parece um amigo”, pensou ela. E começou a seguir a estrela. Até que penetrou no pinhal. Então num instante as
sombras fizeram uma roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam com grandes gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além de todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela.
Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos. “Será um lobo?”, pensou. Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se.
Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.
“Será um ladrão?”, pensou.
Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de diamantes.
- Boa noite – disse Joana. - Boa noite – disse o rei. – Como te chamas? - Eu, Joana – disse ela. - Eu chamo-me Melchior – disse o rei. E perguntou: - Onde vais sozinha a esta hora da noite? - Vou com a estrela – disse ela.
- Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela.
Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que, numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.
E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia.
Joana olhava, olhava, olhava.
Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel. Um dos primos puxou-a por um braço.
- Joana, ali estão os teus presentes.
Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas. À sua volta todos riam e conversavam.
Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido, falando ao mesmo tempo.
E Joana pensava: - Talvez o Manuel tenha tido um automóvel. E a festa do Natal continuava. As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos
sofás a conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar.
Até que alguém disse:
- São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas das crianças se irem deitar.
Então as pessoas começaram a sair. O pai e a mãe de Joana também saíram. - Boa noite, minha querida. Bom Natal – disseram
eles. E a porta fechou-se. Daí a um instante saíram as criadas. A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a
Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas.
E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.
- Bom Natal, Gertrudes – disse Joana. - Bom Natal – respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento. Depois perguntou: - Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é
verdade? - O que é que eu disse? - Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal
porque os pobres não têm presentes. - Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não
teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.
- Mas então o Natal dele como foi? - Foi como nos outros dias.
- E como é nos outros dias? - Uma sopa e um bocado de pão. - Gertrudes, isso é verdade? - Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que
a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.
- Boa noite – disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um e pensava:
- Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que eu queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.
E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.
“Que frio lá deve estar!”, pensava ela. “Que escuro lá deve estar!”, pensava ela. “Que triste lá deve estar!”, pensava. E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma
luz onde Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.
- Amanhã vou-lhe dar os meus presentes – disse ela. Depois suspirou e pensou: “Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite
de Natal.” Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros
espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.
“Hoje”, pensou Joana, “tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.”
Foi ao armário, tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia- lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.
Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.
Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.
Depois atravessou o jardim. O Alex e a Chiribita ladraram.
- Sou eu, sou eu – disse Joana. E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se. Então Joana abriu a porta do jardim e saiu. E juntos seguiram através do pinhal.
E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite. Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas
esmeraldas e safiras. - Boa noite – disse ela. – Chamo-me Joana e vou com a estrela. - Também eu – disse o rei -, também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar. E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis e os pinheiros
escuros. Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era
preta. - Boa noite – disse ela. – O meu nome é Joana. E vamos com a estrela. - Também eu – disse o rei – caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar. E juntos seguiram os quatro através da noite. No chão os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados
dos três reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis. Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou. E continuaram a caminhar. Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem
sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava. E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo. Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma
sombra. E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar. Era assim, à luz dos anjos, o Natal do Manuel. - Ah – disse Joana -, aqui é como no presépio! - Sim – disse o rei Baltasar -, aqui é como no presépio. Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.


Sophia de Mello Breyner Andresen, A Noite de Natal, Ed. Figueirinhas








Notícia: Agência Ecclesia - "Jesus que «nasce hoje» e para cada um"

Natal: Celebrar Jesus que «nasce hoje» e para cada um

Lisboa, 24 dez 2013 (Ecclesia)

O padre José Tolentino Mendonça, poeta e biblista, disse à Agência ECCLESIA que a solenidade do Natal celebra o nascimento de Jesus também nos dias de hoje, como oportunidade de superar a “autossuficiência”.

“Jesus não nasceu, nasce. Jesus não foi apenas contemplado por aqueles personagens que nós colocamos no presépio, cada um de nós é uma personagem do presépio e tem de sentir-se envolvido nesta história sentindo que ele nasceu para si”, assinala o vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa.
Segundo o especialista, há quem viva “o mistério do Natal de uma forma muito autossuficiente” dispensando o próprio Jesus, como se “fosse apenas uma conversa”.
“Jesus nasceu para que cada um de nós tenha a possibilidade de nascer mesmo sendo velho, mesmo sentindo que até já viveu coisas contraditórias mas somos chamados a sentir que Jesus nasce hoje para nos fazer nascer neste momento”, precisa.

O biblista analisa os relatos dos primeiros capítulos do Evangelho de São Lucas, relativos ao nascimento de Jesus, marcados pela “alegria” e pela atenção ao “marginal”.

“Um dos traços muito belos na narrativa da infância é esta espécie de propagação: eu vi e vou chamar outro a ver e vou dizer o que vi e vou contar e tece-se como uma espécie de polifonia. É como que uma luz que não se pode esconder e a propagação é hoje para nós um compromisso muito grande”, refere.
Tolentino Mendonça sublinha que o evangelista Lucas “situa a mensagem de Deus numa história concreta”, nas “coordenadas do tempo e do lugar”.
Nesse sentido, apresenta-se Deus que “rebusca a história, que a revira mostrando as possibilidades inauditas que a história conserva”, desafiando cada pessoa a viver “a emergência da aventura do divino na história pelo mistério da encarnação de Jesus”.

O padre e poeta madeirense dá como exemplo o canto do ‘Magnificat’, no qual Maria recorda não só o passado mas também “o presente atuante redentor de Deus”.
A cidade de Belém, na qual é situado o nascimento de Cristo, recusou “hospitalidade” a José e Maria, grávida, e segundo Tolentino Mendonça “este não reconhecimento há de marcar a vida de Jesus desde o primeiro instante da sua passagem pela terra”.
O estábulo onde nasceu é um “lugar marginal” e a manjedoura um “lugar da comida, dos impuros”, como os pastores, “os últimos na escala social” mas os que “primeiro chegam, que primeiro acolhem a adorar o Deus que nasce”.

“É a grande alegria do nascimento de Jesus e o anúncio de uma salvação para todos, não para os eleitos mas uma salvação que chega a todos os homens e por isso veem os últimos”, explica o biblista.
Para Tolentino Mendonça, todos estes símbolos dizem “alguma coisa do ministério de Jesus que é o salvador de todos mas que abre o seu coração de uma maneira muito particular para os últimos de cada tempo e de cada sociedade”.
HM/CB/OC 


Agência Ecclesia


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

JESUS, UM IMPACTO PROFÉTICO ATUAL


Ainda hoje há um certo problema em debater o impacto profético de Jesus, Deus não encarnou nas elites (religiosas ou políticas), Ele não pertenceu ao “sábios” do templo nem aos mestres da lei mosaica. Jesus não veio grande, a sua chegada veio na humildade e pobreza da Galileia, composto por um povo sofrido com a ocupação romana e a conivência de Herodes.

“Responderam-lhe eles: “Também tu és da Galileia? Investiga e verás que da Galileia não sairá nenhum profeta””.
(Jo 7,52)


Nesta frase do evangelista João notamos que a Galileia não tinha qualquer relevância para os importantes, o próprio templo também os esqueceu. Jesus faz ouvir a sua voz absorvido totalmente pelo espírito profético, juntamente com uma grande astúcia e inteligência. Na realidade ao não fazer parte quer do sistema religioso, nem da estrutura política, Jesus não teria qualquer “autoridade”, no entanto a sua mensagem foi profunda e incisiva.




A “pax” romana do imperador Tibério era algo de inquestionável, o império impunha uma tributação implacável ao povo galileu. Assim, e com o silêncio de Herodes Antipas, estavam entregues à sua sorte, ninguém os defendia. Foi neste contexto difícil que Jesus surge, é ali e naquele jovem que Deus se revela. Submetendo-se à vontade do Pai, assume sobre Ele a invocação e a ação com o objetivo de instaurar o Reino de Deus.
A Sua vida pública é iniciada perante os últimos, aqueles excluídos e esquecidos quer do império quer da própria religião. Aquela gente estava condenada a viver na pobreza, em que a escuridão da vida lhes aniquilou a esperança de um “mundo novo”.

Tal como hoje, os que estavam fora do esquema do poder não tinham qualquer garantia senão a sua própria sorte.
Os próprios “senhores” da lei e do culto do templo estavam mais focados nas suas atividades rituais, do que na proteção e aproximação do seu povo.




“Quem se põe a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela Sua ajuda, porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar os nossos olhos, quando caminhamos para a plenitude do amor”
(Lumen Fidei, 35)

É precisamente no escuro daquela realidade histórica que Jesus trouxe a sua novidade profética, a luz que abre o caminho por entre o túnel da incerteza, da angústia e do medo. Como Nele, é esta audácia da verdade, a coragem contra a injustiça que nos deve inspirar a todos nós, cristãos de coração, nesta altura de profunda dificuldade e abandono.

É essencial notar que Jesus não vem com a intenção de condenar os pecados, mas sim para humanizar a vida e assim a própria história. No assumir a vontade do Pai, na Sua dimensão de “logos”  encarnado, é que O faz connosco (cf. Jo 14,6), nele transpira a dinâmica da força criadora de justiça de Deus, refletida no Amor pela criatura amada, enquanto promotor de uma vida plena, e não uma vida ferida pelo sofrimento, uma vida-não-vida.
Sem entrar na questão das experiencias religiosas de Jesus, podemos constatar que é a Sua condição profundamente humana que marca toda a ação, Ele na Sua humanidade é o paradigma de uma experiência intima com Deus, abrindo-nos a todos a possibilidade de a fazer possível nas nossas vidas concretas e singulares.
Infelizmente muitas vezes transmite-se uma noção de Jesus enquanto juiz castigador, no entanto Jesus não nos é dado para condenar e castigar, mas sim para ir ao encontro de todos, colocando como prioridade os que sofrem, os excluídos da história, os últimos. 
Jesus não se conforma com a injustiça, mostra de uma forma clara que esta é totalmente contra Deus, Ele é aquele que aposta como ninguém na valorização da vida, mas não apenas como existência, a sua aposta é numa vida digna em que os últimos são os primeiros (cf. Mt 19,30. 20,16; Mc 10 31; Lc 13,30), em que jamais um se deve sobrepor ao outro, porque o outro é igual aos “olhos de Deus”. O Reino de Deus que Jesus tanto busca, é do que o clímax da humanização da vida.

Jesus enquanto encarnação de Deus, vai na sua vida apercebendo-se da Sua condição, abrindo deste modo o horizonte para uma alternativa de convivência, seguindo a Deus, não num estilo como o que era feito no templo, mas como experiencia de Deus, que a todos atrai, para deste modo sermos os agentes na construção de um mundo mais justo e portanto mais humano. O Reino de Deus é uma forma nova de entender a vida, não é um lugar, mas uma condição de se entender e viver em Deus (cf. Gl 2,20), que no entanto se distanciava e ainda se distancia do conceito comum, do denominado “normal”. Não é Jesus que buscava uma utopia, somos sim nós que vivemos totalmente à margem do que deveria ser normal, somos nós que em vez de nos aproximarmos da “suavidade” da vida, vivemos na tormenta da existência.

“Jesus disse: “Porque me chamas de bom? Ninguém é bom senão um só: Deus.””
(Mc 10,18)

Ele não apresenta uma mensagem enquadrada nos interesses tanto do império romano, como do templo, ele caminha na margem, com os da margem, são neles que Jesus coloca a sua prioridade de ação, é com eles que quer seguir na sua missão.
Aquela gente descartada e sofrida, que nada valia, é onde Deus se revela à humanidade, abrindo-lhes o horizonte para um novo futuro, não “olhando para trás”, mas avançando para a realização plena do Reino de Deus.
A Boa Nova está assente na dinâmica em que todos caminhem para a santidade (cf. 1 Pe 1,16), a “luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das relações humanas, a sua capacidade de perdurarem, serem fiáveis, enriquecerem a vida comum”. E fé não nos torna ausentes do mundo, leva-nos sim a entrarmos nas “suas entranhas”, vivemos e deveremos viver a atualidade sempre confiantes na ação interpelativa e renovadora de Cristo.



O Reino de Deus que Jesus projeta, concebe Deus (esse mistério último) como uma presença que se faz próxima, que acolhe a todos no seu banquete (cf. Mt 22,2), que se abre ao mundo. O encontro com Deus é sempre uma contínua ação do crente, encontramo-Lo no Texto Sagrado, nas ações de culto, no Sacrário, no entanto paradoxalmente Jesus buscava Deus entrando profundamente nas coisas do mundo.
Seguir Jesus, o Deus encarnado, é assumir em plenitude a incansável missão para a construção de uma vida comunitária mais justa e mais humana.




Perante realidade concreta com que estamos confrontados, não podemos ficar parados, a inação diante da injustiça, justificada com absurdas justificações (pseudo-caridosas) para a justificação do sofrimento e humilhação das pessoas, não se idêntica com a “praxis” concreta de Jesus, antes pelo contrário, Jesus é mesmo o paradigma da ação; assim e perante um sistema injusto, à custa principalmente dos que não têm voz, dos mais fracos, dos últimos, teremos de ser nós, enquanto cristãos, a dar voz a quem não tem, em fazer do seu grito o nosso grito, em desprendermo-nos do nosso “casulo religioso” e colocarmo-nos ao lado deles, já que eles são a prioridade de Jesus, e quanto a isto não pode jamais existir qualquer dúvida. Na inação, aí sim, reside o pecado porque aí ausentamo-nos da vontade de Deus.
Muitas vezes discutirmos, questões menores (como por exemplo a ideologia política do Papa) enquanto ao nosso lado pessoas não têm como colocar comida na casa...!

Não tenhamos dúvidas:
a maior oração ao Senhor, está na pratica da verdadeira caridade com os que mais necessitam, esta é a atitude mais incisiva e concreta para a implementação do Reino de Deus.


Consciência ~ Compaixão ~ Humanidade

A ciência não tem consciência
a economia não tem nem sabe o que é compaixão,
os dogmas do capitalismo neo-liberal são inumanos.

Jamais a realização do Reino de Deus é possível sem termos bem presente as três palavras (consciência, compaixão, humanidade) como prioridades em todas as ações por nós realizadas. Não fiquemos passivos à espera de uma intervenção divina, sejamos testemunho e imagem de Deus na construção e promoção de uma nova convivência pacifica mundial, assente no valor da pessoa como o tesouro a ser promovido. Neste compromisso Deus jamais nos abandonará, porque nós não o abandonamos (cf. Mt 28,20).
Nada é irremediável, os fatalismos não têm qualquer razão de ser perante o sofrimento injusto, o que é verdadeiramente impossível é tudo aquilo leva ao sofrimento, à exclusão e à humilhação das pessoas. Enquanto crentes, a atração marcante de Deus tem que levar a que a palavra “irmãos” nos faça aperto no coração. Nas nossas paróquias não fiquemos entretidos na vida religiosa, e surdos perante o grito e o clamor daqueles que sofrem, não podemos jamais abandonar à sorte todos aqueles que desesperam por justiça, sejamos testemunhas comprometidas com Jesus, sentinelas ativas na concretização do bem comum. Não podemos deixar que outros escrevam a nossa história, sejamos nós os protagonistas da história, a “fé é una, porque se dirige ao único senhor, à vida de Jesus, à história concreta que Ele partilha connosco” (nº ... Lumen Fidei, nº 47).




Assim é essencial termos presente na nossa consciência a raiz verdadeira da crise que nos atinge. Pensar que tudo se resolverá com o tempo é um erro, já que as bases do império capitalista neo-liberal continuam bem vivas e ativas, e estas são completamente antagónicas com aquilo que Jesus denomina como Reino de Deus (mais à frente abordaremos novamente este assunto).
Não nos tornemos pessoas apenas viradas para o aspecto religioso convencional, não desprezemos a dimensão do problema que hoje enfrentamos, não fiquemos remetidos a uma filantropia de ocasião, mas façamos da mensagem profética de Jesus a concretização de um caminho renovado de esperança para todos.