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terça-feira, 26 de julho de 2016

Combate à Fome: Justiça ou Caridade?



A responsabilidade pelo destino da civilização é o pilar essencial de toda a acção moral
da humanidade. Esta atitude concretizada, muitas vezes, na “mais simples atitude” de
nós próprios perante os problemas que nos vão surgindo no processo de vida, deverá ser
reportada para a consciência e discernimento numa atitude séria perante todos.
Fazer do outro lugar de encontro com Deus é, cada vez mais a maior interpelação feita a
cada um e à Igreja no seu conjunto. A revelação no amor ao próximo é a grande fonte
de humanização do mundo, porque no encontro com o outro fazemos o encontro com o
próprio Deus, porque com eles somos ligados à filiação divina. Daí que no outro para o
Outro, faz da vivência cristã lugar singular da expressão da gratuidade, do próprio
sentido de vida em verdade e caminho (cf. Jo 14,6) para uma vivência social enquanto
lugar de fraternidade, acolhimento, justiça e paz.
O flagelo da FOME atinge-nos na mais profunda vergonha do progresso humano. Lutar
contra a fome, embora seja sempre precedida do amor (“caris”), 
iga-se profundamente
à justiça elementar, já que coloca em causa o bem mais precioso: a Vida. Uma
sociedade que não se “bata” pela vida é uma caricatura dela mesma.
Deixarmos o nosso irmão cair no abismo da condição humana, em que muitas vezes
apenas lamentamos sem que nada façamos, é ausentarmo-nos da nossa condição cristã,
posicionando-nos na hipocrisia e omissão.

“Satisfaçam-se, antes demais, as exigências da justiça e não se ofereça como dom da
caridade aquilo que é devido a título de justiça” 
(Apostolicam actuositatem, 8)

“Quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não lhes ofertamos o que é nosso;
limitamos a restituir-lhes o lhes pertence. Mais do que praticar uma obra de misericórdia,
cumprimos um dever de justiça” 
(S. Gregório Magno, Regula pastorais)

Como sabemos na doutrina cristã -“dar de comer a quem tem fome”- aparece como das
obras fundamentais da misericórdia, condensando-se a caridade corporal e espiritual (cf.
CIC, 2447).
Na atualidade somos influenciados por hábitos utilitaristas e funcionais, em que a
própria condição humana é muitas vezes sobrevalorizada.
Infelizmente e com a difícil conjectura que atravessamos, muitos nossos irmãos estão
perante este drama, sendo que eles estão bem mais próximos de nós do que
imaginaríamos… Muitas vezes o “grito” de desespero é feito num silêncio perturbador,
em que a força e a esperança na vida começam a faltar. Esta atitude é compreensível, já
que a dignidade é totalmente posta em causa, colocando-se na mais profunda dor
(corporal e espiritual), em que a vergonha leva a que muitos vivam esta realidade numa
enorme solidão, à qual não podemos ficar imóveis.
Famílias estão a passar este drama, existindo mesmo casos em que famílias que
praticavam a ajuda aos necessitados são agora famílias, elas mesmas, necessitadas! Este
problema tem que ser prioridade cristã, nós somos o próximo, e o outro é próximo de
nós mesmos (cf. Lc 10,29-37). Somos parte actual da história da salvação, expressa
nessa relação entre Deus e o homem concretizada numa ligação de profundo e
misterioso amor abrangendo a globalidade da pessoa (cf. Jr 1,4-19).
A fome é a vergonha da condição TOTAL da humanidade, aqui se contém a profunda
falta do sentido ético/moral de toda a civilização, para que vale tantos avanços se não
avançamos na direcção do outro?! Colocarmo-nos na direção de Deus é estarmos com o
outro de uma forma total e disponível. Ao contrário daquilo que muitos pensam, a Igreja
está longe de estar eclipsada pelo secularismo “imperante” na atualidade. A atitude
cristã, enquanto fonte de caminho e de proposta concreta, merece de todos nós um
maior empenhamento. Remetermos a nossa crença apenas para os locais de culto, como
que escondida da nossa vivência diária, leva a que o exemplo e testemunho não passem
de palavras circunstanciais, é pois necessária uma abertura de espírito que abranja a
acção moral. A influência efetiva provém de uma ação concreta, num testemunho carnal
da nossa condição de testemunhas da Pascoa do Senhor.
Ter uma posição firme e corajosa perante este flagelo é uma obrigação, uma atitude de
justiça, de cada um e de toda a Igreja.
Não posso de deixar de referir aqueles que em várias organizações (religiosas ou não)
actuam perante este problema de uma forma de compromisso pessoal, mostrando o que
de mais belo tem o ser humano. Em muitas paróquias esta acção pastoral social de
urgência é feita por anónimos que a realizam em verdadeira dádiva, provida de uma
consciência de caridade, em que não impera “o que já não serve” mas “aquilo que
verdadeiramente é útil”, ou seja, as próprias pessoas.
A fome física solidifica-se numa fome espiritual, retirando ao ser humano a sua autoestima,
potencializando a revolta e o próprio desvio e marginalização social, e aqui os
mais frágeis são os que mais sofrem.
Viver na perspectiva cristã é encarar a vida em liberdade, com Ele caminhamos na Sua
direcção (cf. Lc 24, 13-35). É nesta relação entre Deus e o homem que se baseia toda a
moral cristã. O acolhimento tem que ser razão e motivo de resposta, numa atitude
realmente gratuita e comprometida (cf. 1 Cor 9,16). Em todos os olhos do homem
brilham a luz do amor de Deus.
Cristo mostrou-nos de uma forma única o excesso do amor por todos nós, criatura
amada e verdadeiro projecto de Deus. Logo a vida tem que ser lugar de proveito e
dignificação de todos. A comunhão de amor entre Pai, Filho e Espírito Santo, leva a que na
Santíssima Trindade se coloque a nossa devoção e contemplação, fazendo da ação cultual uma
busca de um Deus que reflete na mais profunda harmonia trinitária, em que o Seu reflexo e luz
se transcreve numa doação de uns aos outros, em serviço de uns pelos outros.

“Não é na forma ou no modo que uma pessoa fala com Deus, que eu vejo
que ela passou pelo fogo do Amor Divino, mas sim na forma como fala

comigo sobre as coisas terrenas”. 
(Simone Weil)