As Bem-Aventuranças: Chamamento à felicidade
“De facto, Deus colocou-nos no mundo para O conhecermos,
servirmos e amarmos, e assim chegarmos ao paraíso. A bem-aventurança faz-nos
participantes da natureza divina (1 Pe 1,4) e da vida eterna. Com ela, o homem
entra na glória de Cristo e no gozo da vida trinitária.”
CIC, 1721
“Uma tal bem-aventurança ultrapassa a inteligência e as
simples forças humanas. Resulta de um dom gratuito de Deus. Por isso se
classifica de sobrenatural, tal graça, que dispõe o homem para entrar no gozo
de Deus.”
CIC, 1722
“As bem-aventuranças descobrem a meta da existência humana,
fim último dos atos humanos: Deus chama-nos à sua própria felicidade. A vocação
dirige-se a cada um, pessoalmente, mas também ao conjunto da Igreja, povo novo
constituído por aqueles que acolhem a promessa e vivem na fé.”
CIC, 1719
Nas
bem-aventuranças (Mt 5,1-11; Lc 6,20-26) é patente que estas aparecem como um
projeto social, em que o ponto fundamental está no seguimento de Jesus
(expressa na Sua palavra) como caminho para a perfeição. Desta forma o Reino de
Deus torna-se presente, abrindo-nos novos horizontes face ao efémero em relação
ao fundamental. Jesus ao condenar as injustiças, mostra que existe um “olhar”
permanente de Deus perante a forma como lidamos com o mundo, na relação que
mantemos entre todos. Jesus ao “abandonar” a multidão junta-se com os
discípulos para lhe passar as bem-aventuranças, no seu discurso são-nos
apresentados critérios inversos ao usual… no entanto, não podemos de constatar que a atualidade destas
palavras não deixa de ser perturbante!
Uma sociedade
que coloca a palavra do Senhor num plano secundário, fomenta a infelicidade e a
injustiça entre todos, o que cada vez, e infelizmente, é mais notório. É
impressionante como todos os dias somos testemunhas de situações
verdadeiramente desesperantes, e nada fazemos, a não ser colocarmo-nos nas
redes sociais a criticar, sem que no entanto nos coloquemos concretamente numa
ação de mudança, perante uma situação que se vai tornando cada vez mais
massacrante e agonizante para muitos… até quando…?
A violência
das palavras do Senhor prende-se com o caminho que devemos fazer…
As
bem-aventuranças aparecem em Lucas e Mateus, no entanto o conceito de pobreza
tem uma pequena diferença:
“Felizes vós, os pobres,
porque o vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20)
Felizes os pobres de espírito,
porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5,3)
Na
realidade enquanto que em Lucas apenas temos “pobres”, já em Mateus aparece o
termo “pobres de espírito”. Obviamente que em Lucas o alcance social da
afirmação é mais profundo, em Mateus a colocação de – “em espírito” – leva-nos
a uma pobreza voluntária e mesmo evangélica. Esta ação trás consigo renúncias,
colocadas inteiramente no aprofundamento central da figura de Cristo na vida de
cada um. Jesus nunca fez da pobreza um ideal, reparemos que mesmo no seu
diálogo com o jovem rico (cf. Mt 19,16-25; Mc 10,17-27; Lc 18,18-27), o convite
para “vender tudo e dar aos pobres” está
sujeito ao fundamental: em seguir Jesus. Neste seguir que trás
consigo o abandono de muitas coisas, porque o fundamental e via para a
felicidade está no seguimento de Jesus.
Também é
importante notar que na “nova” lei Jesus não rompe com a anterior, neste novo
“Sinai”, Jesus aperfeiçoa a lei: “Não
penseis que vim para revogar a lei ou os profetas, mas levá-los à perfeição”.
(Mt 5,17)
Sendo que
todo recairá sempre no fundamental:
““Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração,
com toda a tua alma, e com toda a tua mente.
Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é
semelhante:
Amarás ao próximo como a ti mesmo.
Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas””
(Mt 22,37-40)
Deus
criou-nos para a felicidade, esta não é uma utopia, mas uma efetiva
possibilidade humana, ao qual Jesus traçou o caminho, esta busca da felicidade
deve ser pois um objetivo central em todo o Cristianismo. Uma vida em que se
eleve o sofrimento, em vez da felicidade, é fechar a própria criação a numa
dimensão totalmente oposta ao amor criador das coisas, esbarrando assim numa
vida fechada em nós mesmos, em puro egocentrismo, num percurso que mais não nos
leva do que à mais profunda infelicidade, porque esta não está no ter mas no ser e no ser em amor, assim sendo
a piedade de Deus, solicito para a
criatura é a ponta para um encontro com a profundeza de nós mesmos e desta
forma com o próprio Deus. Mais uma vez a busca espiritual, leva-nos à própria
busca da tão desejada felicidade.
“O aspeto
da simplicidade da nossa vida de contemplação faz-nos ver o rosto de Deus, em
cada coisa e em cada pessoa, por toda a parte e sempre”.
Deus é
fonte eterna de felicidade, a própria religiosidade cristã deve associar-se a
esta fonte, Nele está contida a razão última da existência como fator e
fundamento de toda a Sua revelação.
Nesta
atualidade vivemos num estado em que se polarizam sonhos, sem que no entanto
sejam edificados por causas de esperança que potenciem uma movimentação na
direção da felicidade, não fechada, mas aberta a todos, à comunidade e ao
mundo.
O ser
humano é incompleto, frágil, finito, assim ao tentarmos viver autonomamente,
achando-nos autossuficientes, retira-nos as noções de partilha e solidariedade,
que embora estejam escritas nos nossos corações, a vida de culto egocêntrico,
fá-las adormecer em justificações mentirosas, conferindo-nos desta forma um
estado de insatisfação permanente e infelicidade, porque jamais seremos capazes
de alcançar tudo aquilo que pretendemos. Esta busca deverá assentar na sua
razão o bem comum (já tantas vezes citado neste livro), só assim fazemos da
vida experiência verdadeiramente validade de felicidade.
A finitude
terrestre não pode ser fator de medo e de infelicidade, porque em Cristo é-nos
dada a eternidade, a qual deve ser “motor” de motivação em sermos diariamente
testemunhas da Páscoa do Senhor levando a alegria transbordante da fé,
tornamo-nos, desta forma, o prolongamento da luz do mundo que habita entre
todos e que ilumina a escuridão dos dias. A alma e o corpo nunca se
desprenderão, após a passagem da morte apenas estas estarão numa realidade
espiritual, o que resta é isso mesmo: restos… O corpo já não está ali, porque o
corpo juntamente com a alma já se renovaram na luz espiritual, onde
contemplarão a verdade em todo o seu esplendor. Recear a morte é vivermos
ausentes da mensagem da Páscoa do Senhor, porque ao vivê-la na plenitude damos
conta que a vida vale mesmo a pena e que
ela é o valor dos valores…
No meio de tantas notícias tristes, existem
também exemplos para os quais devemos focar, já que do Espírito Divino busca
sempre a dignificação da convivência, o amor doado de Deus alimenta o alento da
felicidade da vida de todos sem qualquer exceção. Este sentido da dignidade
humana é claramente um combate de crentes e não crentes, que nas suas diversas
formas têm promovido pelo mundo, daí que valorizar
a vida seja uma evidência da natureza existencial da pessoa.
“Quando
Deus fica eclipsado começa a esmorecer em nós a capacidade de reconhecer a
ordem natural, o fim e o bem” o homem necessita de Deus, na Sua encarnação
dá-se o cumprimento total da palavra, em que Nele se reflete a imagem de Deus,
não como um rei poderoso em riquezas e na força de armas, mas num Rei rico em Humildade, Misericórdia e Amor,
sendo o verdadeiro fermento para uma vida renovada.
A iniciativa da salvação parte da gratuidade
total de Deus, não pelas nossas virtudes e méritos, mas na absoluta
misericórdia de Deus.
“O caminho da paciência, da vergonha e do sofrimento é o
caminho do abstencionismo de que o homem mais de deseja para si, a felicidade.
(…) Imitar a obediência fiel e a paciência renunciante de Jesus pelas quais
traz a eternidade ao tempo: eis o que se chama de crer, esperar e amar”
Hans Von Balthazar, “Teologia do Tempo”
O ódio, o
absurdo, a indignidade, a ausência de valores, a própria falta de liberdade e
de humanidade, remete-nos para uma vida vulgar, sem a percepção do significado
da qual é merecedora. Numa realidade comandada por um pragmatismo extremo,
implanta-se na realidade atual várias decisões, no entanto a questão que se
coloca é a seguinte: o que é ser cristão?
O sentido humanista da realidade é um ponto
fundamental ao qual o cristianismo jamais se alheia, no entanto, colocar Deus
no centro das nossas decisões, é o que nos faz verdadeiramente cristãos, porque
realmente só Ele é razão e fonte da vida. Uma vivência cristã da realidade, não
nos pode colocar escondidos das vicissitudes do mundo, como que fechados em
“redomas” nas quais quem está “fora delas” é incapaz de obter a salvação; pelo
contrário, o Cristianismo deve potencializar a coragem na busca de soluções
válidas para os problemas e a infelicidade. O homem jamais pode estar submetido
a modelos económicos, os modelos económicos é que devem responder com justiça
às necessidades do homem, potencializando as suas competências ao serviço da
comunidade, e desta forma originando uma sociedade mais livre e verdadeira. Não
tenho dúvidas que quem prejudica os outros através da mentira e da pura
especulação, é abatido por um alerta da consciência, no entanto ao sermos
“levados ao sabor dos tempos”, mesmo que estes sejam o caminho para o
precipício, leva-nos a ver a realidade de uma forma deturpada, em que a própria
felicidade está apenas em ter mais do que o outro, e este ter não é apenas
económico, é também alimentado por uma busca da sobrevalorização e de prestígio
pessoal, em o que se valoriza é nada mais nada menos do que a vaidade. Vejo que
em certas situações a própria ajuda surge como motivo de ganhar “status”, sendo
que quem ajuda verdadeiramente, devia fazê-lo sem esperar louvores pessoais,
mas visando apenas a felicidade do outro, porque no outro está o seu irmão…
quem ajuda esperando algo em troca não ajuda, mas faz negócio com necessidade
alheia.
Em Jesus
vemos que a submissão à Lei não surge como coação, mas sim como sentimento
profundo da gratidão do Pai, que em amor lhe manifesta a própria Lei, estando
sempre no amor fiel e livre. Na vida de Jesus não o vemos a exalta-se a si
próprio, mas sim vontade do Pai, que se revela na Sua pessoa, daí que a Sua
obediência não é aos homens mas sim a Deus, que ao estar totalmente ligado a
Ele, aceita a Paixão e morte numa demostração completa de que em Deus está a
libertação total do homem, perante todas as coisas, até mesmo da morte.
A felicidade está assim orientada para Deus, só
Ele é merecedor da nossa total fidelidade, só Nele devemos depositar as nossas
dificuldades e atribulações, mas também os sucessos e alegrias, nesta relação
de esperança iluminada pela fé, é-nos mostrado que a liberdade é concedida pelo
próprio amor de Deus, que sendo essência do Amor, é também a essência da
felicidade, na qual glorifica os seus filhos através do Unigénito.
“Estes cristãos vêm na prática da sua fé uma garantia que tais decisões
são presididas pelo amor, que as suas opções salvaguardam o sentido da
dignidade da pessoa e os valores éticos e que permaneçam livres de ideias
puramente pragmáticas e de maquiavelismos políticos. Isto não diminui em
qualquer caso a intensidade do seu compromisso e clareza da visão. A orientação
cristã da sua vida permite-lhes ir além das palavras dos políticos e encontram
formas mais criativas de libertação humanas e fraternas”
S. Galilea – “Concilium”
Claro que
estas palavras têm em si mesmas um sentido válido, no entanto a redenção de Deus tem um papel
fundamental na própria busca da liberdade, ou seja, a busca da liberdade não pode
prescindir a redenção divina. O sofrimento e dor que muitas vezes pesam
sobre a humanidade e sobre cada indivíduo, levam ao desalento e mesmo à descrença, no entanto
não percamos nunca a noção que: a
presença de Deus é algo à qual nos está destinado. Abrimo-nos à ação de
Deus em nós é abrimo-nos à Sua graça e redenção, que muitas vezes nos desarma,
porque a Sua presença é efetiva.
Ao
olharmos para a cruz, em vez de nos focarmos na dor (que efetivamente está lá
bem patente) devemos olhá-la como momento de abertura à esperança de uma vida
renovada, na agonia de Cristo é nos dada a redenção e a ressurreição,
conferindo assim um sentido único à beleza da vivência cristã.
Ao
darmo-nos ao outros e assim a Deus, realizamos a Sua vontade abrindo no nosso
coração a alegria cristã, esta é a
“exigência” à qual não podemos ocultar enquanto cristãos, porque na opção livre
de seguir a Cristo, está sempre na responsabilidade que tal decisão requerer,
porque quer queiramos ou não:
Não
existem cristãos apenas de domingo, EXISTEM CRISTÃOS.
O oitavo
dia já está presente na nossa vida desde há dois mil anos.