. uma das crónicas que mais gostei, publicado no Jornal O Público em 12 de setembro de 2011.
. entrevista concedida à TSF no passado domingo 21 de setembro de 2014.
in Jornal o Público, 12 de setembro de 2011.
Despediu os ricos de mãos vazias
1. Há muitos anos, um rapaz, a quem entreguei o
Livro das Horas para participar na oração de Vésperas da minha Comunidade, ao
devolvê-lo, segredou-me: então sempre é verdade que Nossa Senhora é a padroeira
da UDP!
As Vésperas terminam com um hino revolucionário, cantado ou rezado,
atribuído por S. Lucas a Maria de Nazaré quando, grávida de Jesus, foi visitar
a sua prima Isabel, grávida de João Baptista. Deste encontro a quatro resultou
um poema conhecido, na tradução latina, como o Magnificat. A Bíblia de
Jerusalém chama-lhe a esperança dos pobres, mas apresenta-se também como a
desgraça dos ricos: “derrubou os poderosos de seus tronos/ e exaltou os
humildes. // Aos famintos encheu de bens/ e aos ricos despediu de mãos vazias”.
Charles Mauras (1868-1952), de quem Salazar recebeu alguma influência,
apreciava a Igreja Católica pela sua constituição hierárquica e por ter
conseguido esconder do povo muitos dos ensinamentos perigosos da Bíblia.
Desconfiava dos evangelhos - escritos por 4 obscuros judeus - e detestava, de
forma especial, o Magnificat. Manifestava-se agradecido à Sagrada
Liturgia do seu tempo por ter mantido essa peçonha em latim, envolvida em sons
musicais que lhe disfarçavam o veneno.
Será, no entanto, este hino a voz de uma mulher ressentida que transfere
para Deus uma insaciável vontade de vingança? Ricos, escutai: até hoje foi a
vossa vez, agora é a nossa!
2. Este poema inquietante, amortecido pela
repetição diária, faz parte do Evangelho de Jesus Cristo que é uma boa notícia,
precisamente porque anuncia não só aquilo a que é urgente dizer sim e aquilo
que é preciso recusar, mas, sobretudo, porque mostra como é possível a todos
começar já a mudar a vida.
Os ricos podem salvar-se consentindo em libertar-se do
seu poder de humilhar os pobres. Tanto o caminho da felicidade das vítimas da
pobreza imposta, como o da felicidade dos ricos, descobre-se no processo da
conversão do desejo. Mudar o desejo de dominação em vontade de trabalhar por um
mundo de irmãos, um mundo de mãos dadas - contribuindo cada um com os seus
talentos para cuidar sobretudo daqueles que nasceram “sem unhas nem viola” –
significa encontrar o tesouro escondido da vida verdadeira. Zaqueu, ao encontrá-lo,
foi pronto em confessar-se como corrupto profissional e em tornar-se o exemplo
perfeito da libertação alegre, interior e exterior, que a conversão operou na
vida de um grande rico (Lc.19).
No domingo passado, S. Paulo recomendava aos cristãos:
“ não devais nada a ninguém, a não ser o amor de uns para com os outros”. Para
ele, todos os mandamentos podem ser resumidos em poucas palavras: amarás o
próximo como a ti mesmo. Isto, porém, só é possível, de forma consciente ou
inconsciente, com o olhar do coração divinamente transfigurado. Admitir que
qualquer ser humano é nosso irmão - e deve ser tratado como tal - é mais
difícil do que admitir, neste mundo caótico, a presença de Deus.
3. Os fariseus, amigos do dinheiro, riam-se do
lirismo das propostas paradoxais de Jesus sobre as relações entre felicidade e
riquezas. Não podiam, por isso, entender as razões e o sentido da sua dureza
com os ricos, os abençoados da divindade. Jesus não suportava uma cultura e uma
religião que tinham como bênção divina um sistema de privilégios que mantinha e
alimentava um abismo entre criaturas humanas. Enunciou um princípio para a
religião em que cresceu que pode ser universalizável para todas as
instituições: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. A
economia e a finança são para o ser humano e não o ser humano para os impérios
dos mercados.
Hoje, ainda com mais razão, devido à distância de
tempo e cultura, podemos pensar que, do Novo Testamento, nada há que nos possa
ajudar a ser felizes nesta civilização suicida.
No entanto, no passado domingo, Jeffrey D. Sachs,
professor de economia e director do Earth Institute na Universidade de
Columbia, mostra precisamente o contrário, num artigo publicado no EL PAÍS,
intitulado “La economia de la felicidad”. Segundo ele, nos EUA, e não só, uma
ampla maioria dos cidadãos crê que o país está no caminho equivocado. O
pessimismo disparou. Importa, por isso, “voltar a considerar os motivos básicos
da felicidade na nossa vida económica”. A procura implacável de maiores
proventos está a conduzir a uma desigualdade e a uma ansiedade sem precedentes
e não a uma maior felicidade e satisfação na vida. O progresso económico é
importante e pode melhorar, de forma marcante, a qualidade de vida, mas só no
caso de ser um objectivo que se procura juntamente com outros. A felicidade só
se consegue com uma estratégia equilibrada, tanto por parte dos indivíduos como
das sociedades. Como indivíduos, não somos felizes se nos privam das nossas
necessidades elementares, mas também não somos felizes se a procura de maiores
proventos substitui a nossa dedicação à família, aos amigos, à comunidade, à
compaixão e ao equilíbrio interior. Como sociedade, uma coisa é organizar as
políticas económicas para que os níveis de vida aumentem e outra, muito
diferente, é subordinar todos os valores da sociedade a ter cada vez mais.
Entre nós, a obsessão financeira, em nome da troika, acaba por
deixar os pobres sem nada e os ricos com as mãos cheias. Nossa Senhora perdeu.
Público, 12 de Setembro de 2011
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