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sábado, 14 de dezembro de 2013

~Soltas... sofrimento ....~



Quando o assunto é o sofrimento é necessário ter muito cuidado e acima de tudo muita humildade e sensatez. O sofrimento é mau, disso não pode jamais existir qualquer dúvida. O mal, nas suas diversas expressões, é desconcertante em toda a sua profundidade, chegando mesmo, em muitos casos, a escapar ao entendimento racional.
A maneira como hoje vivo a vida, como as coisas se vão maturando na consciência, a forma como vivo a fé, leva-me cada vez mais a compadecer com os outros, a olhar para a fé com a dor de todos os mal do mundo, e que muitas vezes são cometidos em nome do “mesmo” Deus em que acredito, no Deus que Jesus nos mostrou.

“Deus permitiu inconsistências na Bíblia, para nos mostrar que não nos devemos empenhar numa leitura literal da Escritura, mas que devemos procurar o seu significado mais profundo”.
 Esta frase interessantíssima de Orígenes foi feita no séc. III, no entanto continua atual. Como se pode constatar este problema da literalidade na abordagem à Escritura não algo de novo tendo mesmo levado a que a teodiceia ganhasse forma. Esta disciplina aborda como reconciliar a existência do mal e do sofrimento no mundo com a fé num Deus bondoso e omnipotente. Obviamente que não pode fornecer respostas claras, no entanto o falhanço não está na teodiceia mas no “objeto” que analisa.
Mas surge também uma questão legítima,
será que o ateísmo dá as respostas certas, ou fica na especulação?

Será que não é mais fácil, perante a confrontação do mal e do sofrimento, chegarmos à conclusão que Deus não existe?

Nunca podemos esquecer que a teologia enquanto disciplina, não está confinada ao “dogma” da fé como tal, a teologia “vive da heresia”, necessita dela como opositora indispensável.

Perante o sofrimento, somos capazes das dissertações mais abrasadoras, todos gostamos de dar opiniões, mas antes de tudo em vez de arranjarmos teorias, temos que ter a humildade do silêncio. Eu não sei nada do que é o verdadeiro sofrimento, já contactei pessoas que atravessam pelo deserto da dor (que nem sempre é física), mas a palavra de pouco adianta. Fico completamente revoltado com algumas pregações acerca do sofrimento, que não cabem na cabeça de ninguém...

Imaginemos alguém que perdeu um filho criança com uma doença que a fez sofrer..., o que dizer a essa pessoa, “que deus assim quis, foi a sua vontade?!”, então que deus é este que se diz amor e que “quer” para satisfazer a sua “vontade”, a morte de uma criança. A dor humana, mesmo quando revestida da armadura do ateísmo militante, é algo que os cristãos devem tomar a sério e tratar com respeito, porque é “território sagrado”. Estar com quem sofre não é justificar o sofrimento, ou tentar justificar Deus perante o sofrimento, não é Deus que necessita de justificação, mas sim a quem sofre urge o alívio.

Muitos dos que vivem no sofrimento, querem por todas a vias ter a certeza da inexistência de Deus, porque se Ele existe faz dano. Para quem sofre deus é aquele que faz a vida enfadonha, mais complicada e mais pesada do que já é. Todos fazem a mesma pergunta, porquê eu? Porquê agora? Quando acabará?

Tive um amigo que foi atingido subitamente por um cancro fulminante, desde a descoberta da doença até à morte, esse meu amigo viveu pouco mais de dois meses numa completa decadência física e psicológica. Acreditava em Deus, no entanto não era cristão. Muitas vezes tentou arranjar justificações para o que lhe aconteceu, no entanto e com o passar do tempo, apenas ficou o silêncio. Ele não queria falar em nada apenas queria que eu estivesse ali presente... apenas a presença... já não havia lugar para palavras, discursos, dissertações, apenas a presença...
Daí que não vale a pena frases belas sobre o sofrimento, o importante é estar presente... a dor muda o temperamento, altera os pensamentos e as certezas da vida.

Uma outra forma de viver esta realidade (e atenção nada justifica o mal em si), estão em testemunhos que nos levam a uma dimensão em no interior do sofrimento, e através da fé em Jesus, é possível viver algo enormemente admirável. A tortura do sofrimento pessoal encontra-se com uma intimidade singular com Deus, e esta relação é absorvida pelo movimento, no qual o sofredor reúne a sua dor com a dor de todos, mesmo assim isto não tira jamais a constatação de que o sofrimento é mau. Etty Hillesum é um caso em que perante o horror e o sofrimento do holocausto, foi capaz de ter uma espiritualidade aterradora, de compaixão e amor a Deus.

São tempos de horror, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, fiquei acordada no escuro, os olhos ardentes, imagens de sofrimento humano desfilando sem parar à minha frente. Oh, meu Deus, vou prometer-te uma coisa, uma ninharia: vou proteger-te hoje, de tantos fardos, das angústias que o futuro me inspira; mas isto requer um certo tempo. Por agora, cada dia vale a pena. Vou ajudar-te, meu Deus, a não desvaneceres em mim, mas não posso garanti-lo à partida. Agora contudo, me aparece mais claro: não és Tu quem pode ajudar-nos, mas somos nós que te podemos ajudar – e, ao faze-lo, ajudamo-nos a nós próprios. É tudo o que o que podemos salvar neste momento e é também a única coisa que conta: um pouco de Ti em nós, meu Deus. Talvez possamos nós contribuir-Te para Te divulgar junto dos corações martirizados dos outros”

Etty Hillesum morreu em Novembro de 1943, em Auschwitz, tinha 29 anos.

Daí que repita, é necessário muita sensatez ao abordar o sofrimento, principalmente fazendo-o ressoar no ambiente da crença. Cuidado tanto as divagações fáceis, em relação ao sofrimento enquanto acontecimento. Assim como critico algum tipo de crença pouco esclarecida, não tenho dúvida em notar em muitos ateus, que implícita ou inconscientemente manifestam raciocínios pseudoteológicos, que mais não passam do que elaborações baseadas em noções de religiões primitivas. Mas isto fica ao critério e ao bom senso de cada um.


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