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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

DOGMA (1/2)


A Igreja tem um lugar fundamental no que se prende à interpretação e divulgação das escrituras que nos revelam a História da Salvação. A partir de estruturas historicamente diferenciadas, com vários modos de pensamento, com diversas linguagens teológicas e com diferentes consciências da própria fé, a Igreja é pois um lugar onde toda a temática assume não somente um caráter de exegese, mas também de transmissão à comunidade crente da mensagem estruturante para as suas vidas. No entanto nota-se também que o conhecimento que a Igreja tem da verdade contida na revelação, aparece, não raras vezes, fragmentada em linguagens e conteúdos particulares quase inumeráveis. Assim, e deste modo, a transmissão eclesial e a revelação original muitas vezes ficam distanciadas por ações em que a crença ao extremar-se, em vez de fazer da Palavra via edificadora de Vida Nova, transforma-se somente numa redutora pratica exterior e circunstancial, pouco sujeita à reflexão, tornando-a, não em verdade libertadora mas em norma que prende, levando a que a ação interior (verdadeiramente fundamental) não passe de intenções ditas mas não sentidas. O problema da revelação original com o posterior pensamento da Igreja estão algumas vezes em rota desviante, isto deve-se à notável escala querigmática neotestamentária ligando-se obviamente a centralidade do problema da unidade teológica da Escritura.

Para muitos o dogma está associado a uma ideia ligada a um sistema doutrinal fixo que “obriga a …” estando assim remetido a um conjunto de normas distantes da mensagem primitiva, sendo assim o dogma poderá estar intimamente ligado a uma ocultação da fé, em vez de a iluminar.
Ninguém duvida que, objetivamente, os dogmas são vistos, por muitos, como fórmulas eclesiais cujo entendimento obstaculiza a crença livre. Realmente o homem moderno não gosta de se sentir submetido em aceitar uma unidade formal “imposta” por “sentenças tradicionais”, mais ainda quando estas se desviam daquilo que a razão critica exime; o homem cada vez mais aceita aquilo que pode experimentar e conhecer como sensato e aceitável.

Não me irei estender nesta problemática do conceito de dogma, mas sim tentar deixar alguns pontos de vista pessoais, na qual a sua aceitação e mesmo compreensão se ligam também com a espiritualidade.

O dogma tem obviamente que se enquadrar no interior da própria fé, sendo esta também essencial para a teologia na busca da compreensão de toda a acção de Jesus Cristo. S. Tomás de Aquino via Nele o próprio e essencial elemento constitutivo para a verdade da fé, quando esta se prende com “artuculus fidei”, ligada a um símbolo. Para ele a pertença a um símbolo designa, antes demais a decisão solene, sancionada e definida pelo magistério eclesiástico, que reúne expressamente todos os crentes a esta confissão de fé. Para ele o dogma não está determinado pelos “limites objetivos” de uma pura “fides divina” nem vem clarificado pelo problema ligado à certeza teológica. 

O querigma que se liga intrinsecamente com a origem do dogma tem no entanto um problema central que se prende com a ligação à Sagrada Escritura, estrutura edificadora do conceito dogmático. Neste sentido tem que se ter o cuidado necessário a fim de se evitar que, a partir de “umas poucas mensagens”, se tente justificar, “à priori”, a evolução dogmático-histórica e eclesial de determinadas teologias.
O conceito católico de inspiração da Escritura não exclui jamais os seus diferentes géneros literários da Palavra de Deus. R. Bultman com a sua tentativa de realizar uma “interpretação existencial” do Novo Testamento, por volta dos anos trinta, usou o querigma sem ter em linha de conta a grande confusão linguística, daí se compreender a razão pelo qual muitos teólogos evitem esta multiplicidade de sentidos que a palavra tem. Na realidade o conceito de querigma (κήρυγμα“) abriu o caminho a novos estudos teológicos, estes assentam a sua ação no esforço de entender de uma forma mais aprofundada os conteúdos inseridos de acordo com a norma apostólica originária. Um dos objetivos da “hermaneutica querigmatica” é, por exemplo, fazer com que a instituição catequética esteja ao serviço da prática e transmissão da “Boa Nova”. Só assim e com a dedicação de muitos, é que se pode fazer de uma forma consistente a traduçãodo dogma  como: “proclamação”, “anúncio”, “predicação”, “mensagem de salvação”.
Esta palavra de raíz grega tem no seu conceito a noção de “dotado de autoridade oficial, de uma mensagem de carater público obrigatório”. Sendo assim, o fundamental da comunicação é que esta seja proclamada publicamente, podendo ter por isso um carater subjetivo subjacente.


 

Este verbo está em João Batista, o arauto da vinda do Senhor que “grita em proclamação”.









Também Jesus ao assumir a vontade do Pai, enviou os seus discípulos a proclamar a Palavra (cf. Mt 28,19) como atores da própria proclamação da “Boa Nova”, da “Páscoa do Ressuscitado”.
Em S. Paulo o querigma assume uma dimensão que não só se apoia na revelação, mas também na “parádosis” (παράδοσιν, sendo que parádosis significa “transmissão”, “entrega”, “tradição”) recebida (cf. 1 Cor 15,1 ss.) levando a que quem a proclama, insere-la e concretiza-la na sua vida.Toda a dimensão apostólica tem em Jesus Cristo a centralidade da mensagem, Jesus é o “Logos” Encarnado, o Salvador, que através da Sua ressurreição dá luz ao mundo.

Gostaria também de salientar que na pessoa de Jesus encontramos um homem que sendo Deus é inteiramente homem, isto é importante, já que embora muitos recusem (!): é impossível chegar à contemplação da divindade de Jesus sem entendermos a Sua humanidade. Jesus chorou, teve medo, como um ser humano comum, no entanto jamais recusou a missão que lhe estava destinada e que se funde totalmente em fazer a vontade do Pai (cf. Mc 14,36: Lc 22,42; Mt 26,42). Ele que na cruz chama o Pai (Eli, Eli, lama sabachthani?”- Mt 27,46; Mc 15,34) fá-lo como muitas vezes nós o fazemos, e é nesta “aparente ausência de Deus”, que Este está mais presente. Na angústia e dor do Filho, foi quando o Pai mais se manifestou, em que na Sua glória a morte foi vencida, sendo que desta forma, através do Unigénito, somos também chamados para a vida eterna. A coragem de Cristo é também demonstrada no Getsemeni onde responde: “Sou Eu” (Jo 18,6), na realidade querigma não é somente a mensagem salvífica e mesmo facultativa sobre a atividade decisiva de Deus, Ele é proclamado como o “Kyrios” (2 Cor 4,5), como o “Filho de Deus”, mostrando-nos que aqui reside a natureza e a centralidade oblativa de Jesus Cristo. Deus chama-nos à conversão residindo aqui a própria salvação e libertação, condensada na grande e decisiva Palavra de Jesus: Amor.
Assim libertação não está no ato violento de uns contra os outros, mas sim na ação “violenta” do Amor de Deus, que ao ser acolhida em espírito liberta o homem do ódio. O ódio mata, só perdoando abrimo-nos à possibilidade de vida, porque ao libertarmo-nos do ódio libertamo-nos para a vida. Jesus vem assim libertar o próprio Deus, que estava amarrado àquele povo, segundo muitas e diferentes formas de o conceber. Com Cristo é-nos apresentado a essência de Deus, refletida no Amor sobre todas as coisas, em que não há nem primeiros nem últimos (cf. Mc 10,31; Mt 20,16).

Hoje Jesus continua a ser proclamado na Igreja, o culto litúrgico é centrado em Cristo, é Ele o verdadeiro liturgo, “Cristo ora em favor de nós, ora em nós e é orado por nós” (Santo Agostinho), toda a Sua obra tem como objetivo central: a convocação. Sendo Ele o próprio “Verbo Encarnado”, a “Palavra de Deus” enquadrada na sua existência e ação, aponta para a Páscoa como o culminar da Nova Aliança com a humanidade. Desta forma a liturgia coloca-se numa dimensão elevada, sendo em si mesma fundamento e proclamação do Verbo presente no meio da comunidade dos crentes, que se manifesta em todos e em cada um.

A essência do querigma neotestamentário reside na Proclamação da mensagem vinda do Reino de Deus, na Salvação (Act 13,26), na Graça (Act 20,23), na Reconciliação (2 Cor 5,19) e na Verdade (Ef 1,3). A autoridade da Palavra Proclamada vem da sua dinâmica enquanto Palavra de Deus, que se deu à humanidade através dos discípulos como enviados no lugar de Cristo (cf. 2 Cor 5,19). Assim sendo podemos concluir que Cristo também fala pelos enviados, assim Ele também fala através da Igreja enquanto realidade totalmente inspirada pelo Senhor. A Igreja é pois lugar privilegiado, não só da Palavra, mas da própria Pessoa de Jesus. É nesta noção que reside a essência da infalibilidade da Igreja, expressada na ação iluminada pelo Espírito Santo.

“Para isso, precisamente, enviou Cristo o Espírito Santo da parte do Pai, para realizar no interior das almas a Sua obra salvadora e impelir a Igreja à Sua própria dilatação. Não há dúvida que o Espírito Santo já atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado. Contudo, foi no dia de Pentecostes, em que desceu sobre os discípulos para ficar sempre com eles, que a Igreja foi publicamente manifestada diante duma grande multidão, que a difusão do Evangelho entre os gentios por meio da pregação teve o seu início, e que, finalmente, a união dos povos numa catolicidade de fé foi esboçada de antemão na Igreja da nova Aliança, a qual fala em todas as línguas e entende e abraça línguas na sua caridade…”
(Ad Gentes, 4)



“A ação salvífica de Deus fez-se presente na palavra da pregação, que coloca o novo começo como fundamento criador de um novo futuro, colocando nesse caminho aquele que responde com fé à escatologia dinâmica da ação salvífica divina” (I. Hermann)

Na pregação encontramos espelhada a glória de Deus, que nos dá a “nova vida”, assim a Igreja através dos seus sacramentos concretiza esta dinâmica de pregação e de ação salvadora através dos tempos, no entanto esta verdade inerente à Igreja tem de ser acolhida em toda a sua dimensão através da fé, agindo assim no coração de cada um.
O querigma é desta forma o próprio “chamamento” de Jesus à conversão, em que a fé se concretize na integralidade da ação humana.

A partir deste entendimento, a força salvífica sacramental (devidamente acolhidos na fé) torna-se real, sendo que todos os elementos se juntam numa globalidade apontada para “oriens”.
No entanto, e sem entrar em detalhes, o uso do conceito de querigma é colocado nos dias de hoje em discussão devido ao entendimento dos elementos originais da mensagem do Novo Testamento, desta forma a proclamação evangélica na sua dimensão inspirada dá-nos o entendimento de toda a ação messiânica e salvadora de Jesus Cristo.
Esta ligação da Igreja ao querigma tem na sua vertente pastoral uma fonte basilar, onde, obviamente, a Igreja jamais poderá antecipar um juízo de Deus, mas fortalecida pelo Espírito tem que assumir na revelação a sua forma de estar perante os crentes e o próprio mundo, numa postura colaborante e ativa para com as realidades, visando e agindo para que a atualidade se torne num lugar mais justo e fraterno entre todas as criaturas.
O querigma transmite a revelação no âmbito da Igreja histórica, mas também da sua própria história. Assim a pregação torna-se atual, enquadrando-se nas especificidades das comunidades, em que através do acolhimento dos crentes, sejam eles os novos discípulos na proclamação de Jesus ressuscitado. Uma comunidade rica em fé, esperança e caridade, faz realmente presente Aquele que prega (cf. Mt 18,20), não se remetendo apenas às ações cultuais, mas essencialmente na mensagem de Salvação que nos foi deixada, para que desta forma se interiorize com força normativa de liberdade, permitindo que a História da Salvação esteja contida e contextualizada no presente, tocando a todos e a cada um de um modo sempre particular.

Mas realmente, e voltando atrás, os dogmas são muitas vezes postos em causa pelos cristãos em contraposição com a Igreja. Daí que somente exercitando a espiritualidade somos levados à compreensão do dogma, esta ação no entanto poderá ir por outro caminho em que seja contrária mesmo com a desejada, daí que a própria abertura à espiritualidade cristã, necessite de focar na sua verdadeira centralidade: no mistério Pascal e em toda a mensagem por Ele deixada.


“O Magistério da Igreja faz pleno uso da autoridade que recebeu de Cristo quando define os dogmas, isto é, quando propõe, de um modo que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável da fé, verdades na Revelação divina ou quando propõe, de modo definitivo, verdades ….”
(CIC, 88)

“Existe uma ligação orgânica entre a nossa vida espiritual e os dogmas. Os dogmas são luzes no caminho da nossa fé, ilumina-o e torna-o seguro.
Por outro lado, se a nossa vida for reta, a nossa inteligência e o nosso coração estarão abertos para acolher a luz dos dogmas da fé.”
(CIC, 89)

“A interligação e a coerência dos dogmas podem encontrar-se no conjunto da revelação do mistério de Cristo. Convém lembrar que “existe uma ordem ou «hierarquia» das verdades da doutrina católica”, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente.”
(CIC, 90)





Realmente, muitas vezes, uma aparente aceitação do dogma enquanto autoridade doutrinal pode levar ao desprezo a sua profundidade, perdendo-se o seu acolhimento na fé. Não podemos deixar de notar que nos dias de hoje, admitir dogmas torna-se cada vez mais difícil, esta dificuldade é assim presente na própria ação eclesial na colocação destes enquanto revelação de Deus.
A noção, até agora usual no que respeita à aceitação do dogma, prende-se com o conteúdo plenamente absoluto da Palavra de Deus, no entanto para muitos crentes o dogma é enquadrado num patamar de importância menor no que respeita à sua vivência religiosa.
Por exemplo a noção de “Virginitas in partu”, que se prende com a assunção corporal de Maria ao céu, trás consigo uma alargada discussão teológica, este facto coloca notoriamente em evidência a insuficiência de explicações, implicando assim a própria aceitação do dogma, este facto leva a que se torne patente (em certos casos) uma contraposição entre a “evolução dogmática” e a “história dos dogmas”.  

A exegese evoluiu com a própria evolução dos elementos interpretativos, principalmente com os contributos da investigação histórica, este fato leva a que o magistério da Igreja se venha a tornar cada vez mais “apertado” em transmitir uma revelação de Deus que se produz “agora” pela primeira vez. A Igreja não se considera profeta, no entanto não pode deixar de exercer o seu ministério, tendo a seu cargo conservar, transmitir e interpretar a revelação de Deus. Ela não é uma simples entidade que apenas relata acontecimentos, Ela é acontecimento, como tal Ela fala no aqui e agora, para um presente e para uma determinada comunidade. Enquanto corpo de Cristo, a Igreja tem em Si a “Palavra Viva” e a “Boa Nova”. Assim ao assumir a Sua posição, é também por natureza revelação, desta forma o cristianismo não pode remeter-se para um idealismo fechado em si mesmo, ou apenas às ações litúrgicas, mas deve direcionar-se para uma “praxis” espelhada na concretização missionária revestida da Palavra do Senhor, sendo que Ele é também veículo e elemento fundamental à disposição de Deus no Seu projeto de salvação Universal. A fé cristã assente no “logos” que estando “imanente no Antigo Testamento” (S. Agostinho), aparece em Jesus Cristo como o cumprimento da promessa messiânica tornando-se na sua concretização completa (cf. Jo 1,3-14).

“Uma verdade da fé, ao fazer-se dogma, entra definitivamente na tradição (“Paradoxis”) que progride (…) Por isso o dogma não deve ser uma recordação do passado.”

“A proclamação dogmática de 1950 foi para muitos uma demostração de que a Igreja Católica se alterou de uma forma quase radical, superando inclusivamente às afirmações modernistas dos dogmas, enquadrando-se numa natural evolução enquanto dogmática, mas será que isto foi um corte com o passado ou uma natural evolução enquanto realidade viva concreta dos tempos?”

A Igreja mesmo com as novas formas de pensamento teológico, antropológico e científico, não alterou a sua intimidade com a revelação. A evolução do conhecimento não aparece como uma ameaça, mas sim a uma noção que se prende com o esforço humano em entender um pouco mais do mistério do amor de Deus com a humanidade. Obviamente que “cairemos” sempre no belíssimo mistério da relação da procura entre Criador e criatura, entre Pai que ama e procura os filhos; Ele que através do Unigénito revelou-se em carne, e no Filho a própria essência do Pai é-nos apresentado. O progresso do conhecimento eleva, naturalmente, a própria esfera espiritual individual para a absorção do Espírito Divino que em nós atua de uma forma à qual não somos capazes de resistir (cf. Jr 1,4-9; Is 6,1-13). A invariabilidade do dogma na Igreja não exclui, mas antes incluí toda a história dos dogmas. Este movimento não está apenas na esfera do debate teológico, em que a Igreja ganha consciência de fé clarificando ou questionando determinadas doutrinas, mas ao estar contida na revelação divina, Ela assume-se genuinamente naquilo que crê, obtendo deste modo força esclarecedora para posições ou intervenções heréticas (escolha) da própria transmissão da fé. A fé, como sabemos, partindo de uma opção consciente, é também originária da graça contida na própria revelação messiânica de Jesus, no entanto esta requerer cuidado na sua vivência e na sua educação, sob pena de se tornar numa “crendice” e não num crer esclarecido que dê frutos na missão da “nova evangelização” tão apelada pelos últimos dois Papas.

(Continua...)



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