A
Igreja tem um lugar fundamental no que se prende à interpretação e divulgação
das escrituras que nos revelam a História da Salvação. A partir de estruturas
historicamente diferenciadas, com vários modos de pensamento, com diversas
linguagens teológicas e com diferentes consciências da própria fé, a Igreja é
pois um lugar onde toda a temática assume não somente um caráter de exegese,
mas também de transmissão à comunidade crente da mensagem estruturante para as
suas vidas. No entanto nota-se também que o conhecimento que a Igreja tem da
verdade contida na revelação, aparece, não raras vezes, fragmentada em
linguagens e conteúdos particulares quase inumeráveis. Assim, e deste modo, a
transmissão eclesial e a revelação original muitas vezes ficam distanciadas por
ações em que a crença ao extremar-se, em vez de fazer da Palavra via
edificadora de Vida Nova, transforma-se somente numa redutora pratica exterior
e circunstancial, pouco sujeita à reflexão, tornando-a, não em verdade
libertadora mas em norma que prende, levando a que a ação interior
(verdadeiramente fundamental) não passe de intenções ditas mas não sentidas. O
problema da revelação original com o posterior pensamento da Igreja estão
algumas vezes em rota desviante, isto deve-se à notável escala querigmática
neotestamentária ligando-se obviamente a centralidade do problema da unidade
teológica da Escritura.
Para
muitos o dogma está associado a uma ideia ligada a um sistema doutrinal fixo
que “obriga a …” estando assim remetido a um conjunto de normas distantes da
mensagem primitiva, sendo assim o dogma poderá estar intimamente ligado a uma
ocultação da fé, em vez de a iluminar.
Ninguém
duvida que, objetivamente, os dogmas são vistos, por muitos, como fórmulas
eclesiais cujo entendimento obstaculiza a crença livre. Realmente o homem
moderno não gosta de se sentir submetido em aceitar uma unidade formal
“imposta” por “sentenças tradicionais”, mais ainda quando estas se desviam
daquilo que a razão critica exime; o homem cada vez mais aceita aquilo que pode
experimentar e conhecer como sensato e aceitável.
Não me
irei estender nesta problemática do conceito de dogma, mas sim tentar deixar
alguns pontos de vista pessoais, na qual a sua aceitação e mesmo compreensão se
ligam também com a espiritualidade.
O dogma
tem obviamente que se enquadrar no interior da própria fé, sendo esta também
essencial para a teologia na busca da compreensão de toda a acção de Jesus
Cristo. S. Tomás de Aquino via Nele o próprio e essencial elemento constitutivo
para a verdade da fé, quando esta se prende com “artuculus fidei”, ligada a um símbolo. Para ele a pertença a um
símbolo designa, antes demais a decisão solene, sancionada e definida pelo
magistério eclesiástico, que reúne expressamente todos os crentes a esta confissão
de fé. Para ele o dogma não está determinado pelos “limites objetivos” de uma
pura “fides divina” nem vem
clarificado pelo problema ligado à certeza teológica.
O
querigma que se liga intrinsecamente com a origem do dogma tem no entanto um
problema central que se prende com a ligação à Sagrada Escritura, estrutura
edificadora do conceito dogmático. Neste sentido tem que se ter o cuidado
necessário a fim de se evitar que, a partir de “umas poucas mensagens”, se
tente justificar, “à priori”, a
evolução dogmático-histórica e eclesial de determinadas teologias.
O
conceito católico de inspiração da Escritura não exclui jamais os seus
diferentes géneros literários da Palavra de Deus. R. Bultman com a sua
tentativa de realizar uma “interpretação existencial” do Novo Testamento, por
volta dos anos trinta, usou o querigma sem ter em linha de conta a grande
confusão linguística, daí se compreender a razão pelo qual muitos teólogos
evitem esta multiplicidade de sentidos que a palavra tem. Na realidade o conceito
de querigma (“κήρυγμα“)
abriu o caminho a novos estudos teológicos, estes assentam a sua ação no
esforço de entender de uma forma mais aprofundada os conteúdos inseridos de
acordo com a norma apostólica originária. Um dos objetivos da “hermaneutica querigmatica” é, por exemplo,
fazer com que a instituição catequética esteja ao serviço da prática e
transmissão da “Boa Nova”. Só assim e com
a dedicação de muitos, é que se pode fazer de uma forma consistente a traduçãodo
dogma como: “proclamação”, “anúncio”, “predicação”, “mensagem de salvação”.
Esta palavra de raíz grega tem no seu
conceito a noção de “dotado de autoridade
oficial, de uma mensagem de carater público obrigatório”. Sendo assim, o
fundamental da comunicação é que esta seja proclamada
publicamente, podendo ter por isso um carater subjetivo subjacente.
Este
verbo está em João Batista, o arauto da vinda do Senhor que “grita em
proclamação”.
Também Jesus ao assumir a vontade do Pai, enviou os
seus discípulos a proclamar a Palavra (cf. Mt 28,19) como atores da própria
proclamação da “Boa Nova”, da “Páscoa do Ressuscitado”.
Em S. Paulo o querigma assume uma dimensão que não só
se apoia na revelação, mas também na “parádosis”
(παράδοσιν, sendo que parádosis significa “transmissão”, “entrega”,
“tradição”) recebida (cf. 1 Cor 15,1
ss.) levando a que quem a proclama, insere-la e concretiza-la na sua vida.Toda
a dimensão apostólica tem em Jesus Cristo a centralidade da mensagem, Jesus é o
“Logos” Encarnado, o Salvador, que através da Sua ressurreição dá luz ao mundo.
Gostaria também de salientar que na pessoa de Jesus
encontramos um homem que sendo Deus é inteiramente homem, isto é importante, já
que embora muitos recusem (!): é impossível chegar à contemplação da divindade
de Jesus sem entendermos a Sua humanidade. Jesus chorou, teve medo, como um ser
humano comum, no entanto jamais recusou a missão que lhe estava destinada e que
se funde totalmente em fazer a vontade do Pai (cf. Mc 14,36: Lc 22,42; Mt
26,42). Ele que na cruz chama o Pai (“Eli, Eli, lama sabachthani?”- Mt 27,46; Mc 15,34) fá-lo como muitas
vezes nós o fazemos, e é nesta “aparente ausência de Deus”, que Este está mais
presente. Na angústia e dor do Filho, foi quando o Pai mais se manifestou, em
que na Sua glória a morte foi vencida, sendo que desta forma, através do
Unigénito, somos também chamados para a vida eterna. A coragem de Cristo é
também demonstrada no Getsemeni onde responde: “Sou Eu” (Jo 18,6), na realidade querigma não é somente a mensagem
salvífica e mesmo facultativa sobre a atividade decisiva de Deus, Ele é
proclamado como o “Kyrios” (2 Cor
4,5), como o “Filho de Deus”, mostrando-nos que aqui reside a natureza e a
centralidade oblativa de Jesus Cristo. Deus chama-nos à conversão residindo
aqui a própria salvação e libertação, condensada na grande e decisiva Palavra
de Jesus: Amor.
Assim libertação não está no ato violento
de uns contra os outros, mas sim na ação “violenta” do Amor de Deus, que
ao ser acolhida em espírito liberta o homem do ódio. O ódio mata, só perdoando
abrimo-nos à possibilidade de vida, porque ao libertarmo-nos do ódio
libertamo-nos para a vida. Jesus vem assim libertar o próprio Deus, que estava
amarrado àquele povo, segundo muitas e diferentes formas de o conceber. Com
Cristo é-nos apresentado a essência de Deus, refletida no Amor sobre todas as
coisas, em que não há nem primeiros nem últimos (cf. Mc 10,31; Mt 20,16).
Hoje
Jesus continua a ser proclamado na Igreja, o culto litúrgico é centrado em
Cristo, é Ele o verdadeiro liturgo, “Cristo
ora em favor de nós, ora em nós e é orado por nós” (Santo Agostinho), toda
a Sua obra tem como objetivo central: a convocação. Sendo Ele o próprio “Verbo
Encarnado”, a “Palavra de Deus” enquadrada na sua existência e ação, aponta
para a Páscoa como o culminar da Nova Aliança com a humanidade. Desta forma a liturgia coloca-se numa dimensão
elevada, sendo em si mesma fundamento e proclamação do Verbo presente no meio
da comunidade dos crentes, que se manifesta em todos e em cada um.
A
essência do querigma neotestamentário
reside na Proclamação da mensagem
vinda do Reino de Deus, na Salvação (Act
13,26), na Graça (Act 20,23), na Reconciliação (2 Cor 5,19) e na Verdade (Ef 1,3). A autoridade da Palavra Proclamada vem da sua dinâmica enquanto Palavra
de Deus, que se deu à humanidade através dos discípulos como enviados no lugar
de Cristo (cf. 2 Cor 5,19). Assim sendo podemos concluir que Cristo também
fala pelos enviados, assim Ele também fala através da Igreja enquanto realidade
totalmente inspirada pelo Senhor. A
Igreja é pois lugar privilegiado, não só da Palavra, mas da própria Pessoa de
Jesus. É nesta noção que reside a essência da infalibilidade da Igreja,
expressada na ação iluminada pelo Espírito Santo.
“Para isso, precisamente,
enviou Cristo o Espírito Santo da parte do Pai, para realizar no interior das
almas a Sua obra salvadora e impelir a Igreja à Sua própria dilatação. Não há
dúvida que o Espírito Santo já atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado.
Contudo, foi no dia de Pentecostes, em que desceu sobre os discípulos para
ficar sempre com eles, que a Igreja foi publicamente manifestada diante duma
grande multidão, que a difusão do Evangelho entre os gentios por meio da
pregação teve o seu início, e que, finalmente, a união dos povos numa
catolicidade de fé foi esboçada de antemão na Igreja da nova Aliança, a qual
fala em todas as línguas e entende e abraça línguas na sua caridade…”
(Ad Gentes, 4)
“A ação salvífica de Deus fez-se presente
na palavra da pregação, que coloca o novo começo como fundamento criador de um
novo futuro, colocando nesse caminho aquele que responde com fé à escatologia
dinâmica da ação salvífica divina” (I. Hermann)
Na
pregação encontramos espelhada a glória de Deus, que nos dá a “nova vida”,
assim a Igreja através dos seus sacramentos concretiza esta dinâmica de
pregação e de ação salvadora através dos tempos, no entanto esta verdade
inerente à Igreja tem de ser acolhida em toda a sua dimensão através da fé,
agindo assim no coração de cada um.
O querigma é desta forma o próprio
“chamamento” de Jesus à conversão, em que a fé se concretize na integralidade
da ação humana.
A
partir deste entendimento, a força salvífica sacramental (devidamente acolhidos
na fé) torna-se real, sendo que todos os elementos se juntam numa globalidade
apontada para “oriens”.
No
entanto, e sem entrar em detalhes, o uso do conceito de querigma é colocado nos
dias de hoje em discussão devido ao entendimento dos elementos originais da
mensagem do Novo Testamento, desta forma a proclamação evangélica na sua
dimensão inspirada dá-nos o entendimento de toda a ação messiânica e salvadora
de Jesus Cristo.
Esta
ligação da Igreja ao querigma tem na sua vertente pastoral uma fonte basilar,
onde, obviamente, a Igreja jamais poderá antecipar um juízo de Deus, mas
fortalecida pelo Espírito tem que assumir na revelação a sua forma de estar
perante os crentes e o próprio mundo, numa postura colaborante e ativa para com
as realidades, visando e agindo para que a atualidade se torne num lugar mais
justo e fraterno entre todas as criaturas.
O
querigma transmite a revelação no âmbito da Igreja histórica, mas também da sua
própria história. Assim a pregação torna-se atual, enquadrando-se nas
especificidades das comunidades, em que através do acolhimento dos crentes,
sejam eles os novos discípulos na proclamação de Jesus ressuscitado. Uma
comunidade rica em fé, esperança e caridade, faz realmente presente Aquele que
prega (cf. Mt 18,20), não se remetendo apenas às ações cultuais, mas
essencialmente na mensagem de Salvação que nos foi deixada, para que desta
forma se interiorize com força normativa de liberdade, permitindo que a
História da Salvação esteja contida e contextualizada no presente, tocando a
todos e a cada um de um modo sempre particular.
Mas
realmente, e voltando atrás, os dogmas são muitas vezes postos em causa pelos
cristãos em contraposição com a Igreja. Daí que somente exercitando a
espiritualidade somos levados à compreensão do dogma, esta ação no entanto
poderá ir por outro caminho em que seja contrária mesmo com a desejada, daí que
a própria abertura à espiritualidade cristã, necessite de focar na sua
verdadeira centralidade: no mistério Pascal e em toda a mensagem por Ele
deixada.
“O Magistério da Igreja faz
pleno uso da autoridade que recebeu de Cristo quando define os dogmas, isto é,
quando propõe, de um modo que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável da
fé, verdades na Revelação divina ou quando propõe, de modo definitivo, verdades
….”
(CIC, 88)
“Existe uma ligação orgânica
entre a nossa vida espiritual e os dogmas. Os dogmas são luzes no caminho da
nossa fé, ilumina-o e torna-o seguro.
Por outro lado, se a nossa vida
for reta, a nossa inteligência e o nosso coração estarão abertos para acolher a
luz dos dogmas da fé.”
(CIC, 89)
“A interligação e a coerência
dos dogmas podem encontrar-se no conjunto da revelação do mistério de Cristo.
Convém lembrar que “existe uma ordem ou «hierarquia» das verdades da doutrina
católica”, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente.”
(CIC, 90)
Realmente,
muitas vezes, uma aparente aceitação do dogma enquanto autoridade doutrinal
pode levar ao desprezo a sua profundidade, perdendo-se o seu acolhimento na fé.
Não podemos deixar de notar que nos dias de hoje, admitir dogmas torna-se cada
vez mais difícil, esta dificuldade é assim presente na própria ação eclesial na
colocação destes enquanto revelação de Deus.
A
noção, até agora usual no que respeita à aceitação do dogma, prende-se com o
conteúdo plenamente absoluto da Palavra de Deus, no entanto para muitos crentes
o dogma é enquadrado num patamar de importância menor no que respeita à sua
vivência religiosa.
Por
exemplo a noção de “Virginitas in partu”,
que se prende com a assunção corporal de Maria ao céu, trás consigo uma
alargada discussão teológica, este facto coloca notoriamente em evidência a
insuficiência de explicações, implicando assim a própria aceitação do dogma,
este facto leva a que se torne patente (em certos casos) uma contraposição
entre a “evolução dogmática” e a “história dos dogmas”.
A
exegese evoluiu com a própria evolução dos elementos interpretativos,
principalmente com os contributos da investigação histórica, este fato leva a
que o magistério da Igreja se venha a tornar cada vez mais “apertado” em
transmitir uma revelação de Deus que se produz “agora” pela primeira vez. A Igreja não se considera profeta, no
entanto não pode deixar de exercer o seu ministério, tendo a seu cargo
conservar, transmitir e interpretar a revelação de Deus. Ela não é uma simples
entidade que apenas relata acontecimentos, Ela
é acontecimento, como tal Ela fala no aqui e agora, para um presente e para
uma determinada comunidade. Enquanto corpo de Cristo, a Igreja tem em Si a
“Palavra Viva” e a “Boa Nova”. Assim ao assumir a Sua posição, é também por
natureza revelação, desta forma o
cristianismo não pode remeter-se para um idealismo fechado em si mesmo, ou
apenas às ações litúrgicas, mas deve direcionar-se para uma “praxis” espelhada na concretização
missionária revestida da Palavra do Senhor, sendo que Ele é também veículo e
elemento fundamental à disposição de Deus no Seu projeto de salvação Universal.
A fé cristã assente no “logos” que
estando “imanente no Antigo Testamento”
(S. Agostinho), aparece em Jesus Cristo como o cumprimento da promessa
messiânica tornando-se na sua concretização completa (cf. Jo 1,3-14).
“Uma
verdade da fé, ao fazer-se dogma, entra definitivamente na tradição (“Paradoxis”) que progride (…) Por isso
o dogma não deve ser uma recordação do passado.”
“A
proclamação dogmática de 1950 foi para muitos uma demostração de que a Igreja
Católica se alterou de uma forma quase radical, superando inclusivamente às
afirmações modernistas dos dogmas, enquadrando-se numa natural evolução
enquanto dogmática, mas será que isto foi um corte com o passado ou uma natural
evolução enquanto realidade viva concreta dos tempos?”
A
Igreja mesmo com as novas formas de pensamento teológico, antropológico e
científico, não alterou a sua intimidade com a revelação. A evolução do
conhecimento não aparece como uma ameaça, mas sim a uma noção que se prende com
o esforço humano em entender um pouco mais do mistério do amor de Deus com a
humanidade. Obviamente que “cairemos” sempre no belíssimo mistério da relação
da procura entre Criador e criatura, entre Pai que ama e procura os filhos; Ele
que através do Unigénito revelou-se em carne, e no Filho a própria essência do
Pai é-nos apresentado. O progresso do conhecimento eleva, naturalmente, a
própria esfera espiritual individual para a absorção do Espírito Divino que em
nós atua de uma forma à qual não somos capazes de resistir (cf. Jr 1,4-9; Is
6,1-13). A invariabilidade do dogma na Igreja não exclui, mas antes incluí toda
a história dos dogmas. Este movimento não está apenas na esfera do debate
teológico, em que a Igreja ganha consciência de fé clarificando ou questionando
determinadas doutrinas, mas ao estar contida na revelação divina, Ela assume-se
genuinamente naquilo que crê, obtendo deste modo força esclarecedora para
posições ou intervenções heréticas (escolha) da própria transmissão da fé. A
fé, como sabemos, partindo de uma opção consciente, é também originária da
graça contida na própria revelação messiânica de Jesus, no entanto esta
requerer cuidado na sua vivência e na sua educação, sob pena de se tornar numa
“crendice” e não num crer esclarecido que dê frutos na missão da “nova
evangelização” tão apelada pelos últimos dois Papas.
(Continua...)
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