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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

DOGMA (2/2)



É realmente importante e fundamental a origem do dogma, colocando-o claro em relação a outras verdades da fé, daí que é necessário conferir-lhe profundidade no seu alcance, para que deste modo seja absorvido na plenitude espiritual do crente.
Muitos mal entendidos provêm precisamente desta falta de esclarecimento e aprofundamento na explicação, a partir de uma postura esclarecedora torna-se possível aclarar “erros involuntários” que não fazem parte somente do passado histórico, mas também do momento atual. Aclarar o dogma em relação a outras verdades da fé, supõe a que se apele à consciência e ao pensamento, originando uma acção espiritual, que ao abrir os seus “limites” abrem a proclamação dogmática ao acolhimento na fé.



Nestes novos tempos, tão ligados ao positivismo extremo, a religiosidade necessita de novas formas de ação, sem que com isto se desvirtue a sua essência, deste modo ao se interligar com métodos e formas de comunicação atual, também a religiosidade apontará para renovados caminhos em que a verdade absoluta de Deus seja colocada perante os dias de hoje como uma via (verdadeiramente fundamental) para a existência.
O diálogo ecuménico é, por exemplo, um veículo de aclaramento da história dogmática, onde estão presentes os dogmas invariáveis da Igreja, assim este diálogo ecuménico ao invés de retrocesso, leva ao avanço no caminho da unidade da Igreja e assim de todo o Cristianismo. É assim que o “dogma antigo” mostra-se como luz renovadora no próprio progresso eclesial e, claro, da própria vida pastoral da Igreja.  

Por exemplo o dogma do pecado original (S. Agostinho) e as posteriores interpretações teológicas, o dogma da infalibilidade do Papa e da colegialidade dos bispos, etc.

A teologia da revelação (sustentada pela fé) tem uma história, uma evolução e um “progresso” em que a vinda de Cristo foi determinante, esta evolução tem agora na Igreja a sua expressão por excelência; assim o “dogma novo” tem que estar “implícito” no “dogma antigo”, como sentido basilar da totalidade do crer.
Não pode haver dúvidas que toda a nova verdade só se legitima como tal quando está abrangida e vivida no passado, embora muitas vezes esta não seja percecionada (de forma imediata) em momentos concreto da história humana. Toda a História da Salvação tem o seu entendimento na pessoa de Jesus Cristo, assim o que parecia “obscuro” no Antigo Testamento, surge no Novo Testamento revestido de perfeição (cf. Mt 5,21-48), assim a Palavra tem em Jesus a Sua totalidade suprema, sendo que esta ao ser acolhida na fé, dá-nos um sentido pleno da existência, aberta à relação de uns para os outros e com os outros. Jesus vem portanto aperfeiçoar e esclarecer a Palavra, desta forma Ele não nos dá somente caminho (através Dele) para o próprio Pai (cf. Jo 14,6), Ele, olhando para a própria condição humana, torna-nos completamente capazes de realizar os desígnios de Deus. Nos Evangelhos, obviamente que Jesus não aborda todos os temas, daí que a Igreja, enquanto realidade intrínseca a Jesus, tem de se capacitar cada vez mais em responder às realidades atuais, porque a “Palavra viva” proferida pelo Senhor, não está somente fechada a um período histórico, mas vai-se atualizando (por vezes de forma inquietante) aos tempos e à vida do homem moderno. A vivência cristã é uma realidade abrangida por um significado que se interliga a um caminho, caminho em que no presente entendemos de forma sempre renovada aquilo que foi dito no passado, neste sentido os dogmas têm também a sua história e o seu aperfeiçoamento de entendimento, sem que com isto se rompa com o passado de uma forma mais ou menos radical, mas que se vislumbre agora a abrangência dogmática, também ela aperfeiçoada.


A verdade não está somente numa manifestação original de Deus, esta revela-se numa compreensão da Sua revelação integral. A história desta fé não chegou ao fim somente porque se fechou a revelação acontecida em Cristo. Este “fechar-se” é o “abrir-se” da comunidade a Deus, que acontece expressamente nas palavras dos Apóstolos de Cristo.
Com Jesus Cristo a fé não se remete a um sentido sem forma e sem história de uma mensagem escatológica, esta fé é iluminada na concretização corporal do Verbo, em que desta forma ela assume-se também num contexto histórico. Toda a mensagem cristã atua através dos tempos com as suas especificidades e entendimentos que se vão abrindo ao entendimento de si mesmas.
Ao lermos as escrituras somos interpelados por Deus, cada um na sua singularidade, cada comunidade na sua especificidade, cada tempo em seu tempo, assim a fé permanece sempre contida numa forma renovada em cada um e em cada época, sem que no entanto esta se desprenda da fé “antiga”, sendo que ela é a expressão absoluta do poder intemporal de Deus e da Sua infinita verdade que nos foi doada através da Sua revelação.
Portanto a evolução dogmática não está ligada a “cortes” mais ou menos radicais com o passado, nem por outro lado com “acrescentos” bruscos, mas sim tudo se funde num movimento preso à verdade que nos foi revelada e que em si mesma teve a sua história de compreensão, fazendo com que a essência nos surja como apoio na assimilação total da manifestação de Deus ao mundo.

A partir do sec. XIX e com o início da ciência histórica moderna, a compreensão abriu-se a novos e importantes entendimentos. No entanto esta nova hermaneutica não deve levar nunca a obscurantismos, nem tomadas de posições de rutura, em que o Jesus histórico e o Jesus da fé surjam como incompatíveis, podendo chegar mesmo ao ponto extremo da antítese. Ainda hoje somos confrontados com esta divisão, não são poucos aqueles que “fecham” o estudo teológico sob pena de colocar em causa a fé, pois eu digo:
fraco a fé daquele que assim age ou pensa…
os progressos teológicos são abertos novas realidades em que a própria exegese se aperfeiçoa. A própria espiritualidade “estende-se” por horizontes renovados, levando a ver que o Amor de Deus é realmente único e grandioso.

Este progresso é o caminho natural para uma compreensão esclarecida da mensagem divina, não podemos viver fechados em “theologumena”, mas sim na direção do entendimento, tanto da mensagem, como da própria História da Salvação.
A problemática dos dogmas sempre foi posta em causa pela teologia protestante, que não vê na Igreja Católica a possibilidade de poder dar uma norma absolutamente obrigatória a partir de “um conhecimento privado” das Escrituras. Segundo esta noção só poderá haver uma história da teologia mas nunca uma história dos dogmas:

“A forma de expressão da verdade universal do acontecimento de Cristo varia com o tempo e com a situação geral do espírito, até ao ponto em que numa época passada possa estar justificada, essa mesma pode estar hoje em contradição, em relação à forma e às necessidades do momento atual” (Zum Problem der Dogmatischem).

Atuamente a opinião recai (quase unanimemente) para o fato de que quando se fala que o Espírito “faz recordar” tudo o que Jesus terá dito, esta “recordação” não é como um refrescar da memória sobre os feitos passados, este “recordar” provocado pelo Espírito significa atualização, interpretação e experiência. O próprio R. Bultmann, acerca disto, chegou a afirmar que “nesta obra do Espírito se continua a obra de Jesus como a verdadeira revelação”.

Realmente o dogma provoca, mesmo entre os católicos, algumas tomadas de posição pessoais. Uma das maiores prende-se, por exemplo com a virgindade perpétua de Maria. Na minha vida pessoal conheço muitos católicos que, ou não ligam absolutamente nada para esta noção, como mesmo não a validam, remetendo a justificação para a “naturalidade da vida conjugal que Maria teria com José”. Para muitos, o fato de Maria se ter ou não conservado virgem em nada lhes retira a fé em Cristo, e também não retira a profunda devoção que têm por Maria Santíssima.
A não aceitação de alguns dogmas é para muitos algo que em nada interfere com a fé, atenção que me estou a referir a católicos “ditos praticantes” (adjetivação que não gosto, mas que se faz questão em usar…!). Claro que muitos mais casos em relação a certos dogmas poderia dar aqui como exemplo, no entanto o que pretendo reforçar é a noção, que penso que é essencial, e que respeita ao esclarecimento profundo de certos dogmas, para que deste modo sejam em verdade acolhidos na luz da fé.

A dinâmica da realidade de Cristo ao tornar-se sempre presente na Igreja, confere-lhe uma missão em abrir a todos a concepção pneumatológica da vivência cristã. Restringir a Igreja somente à dinâmica da tradição (per si) é limitá-la, não a podemos fechar à beleza da profundidade da realidade Espiritual divina, que com o “Seu manto” nos cobre, afetando-nos em todas as realidades concretas da vida, nas quais somos sujeitos ativos no testemunho da “Boa Nova”. Muitas vezes a ação litúrgica e em particular a seu ponto fundamental – a Eucaristia – é desprovida de uma maior expressão espiritual, em que tanto o presidente da celebração bem como os que assistem estão extremamente desligados da profundidade daquele momento…
Quando somos tocados no íntimo (“entranhas”) pela ação do Espírito Santo, aí ninguém fica indiferente, sem uma expressão espiritual tudo se torna superficial, porque não nos abrimos, ficando apenas fechados em nós mesmos. A compreensão e aceitação do dogma como realidade edificadora da própria fé, leva a que a Igreja antes de impor, deve mostrar e propor, à luz da Escritura, usando para tal a clareza da explicação a toda a comunidade cristã.



As obras salvíficas de Deus não se realizam todas de uma só vez, elas situam-se em toda a Escritura (Antigo e Novo Testamento) sempre envoltas por uma tensão, em que Deus é persistente no perdão e nas faltas do homem. Esta tensão atinge o seu ponto máximo, em relação à humanidade, na encarnação do “logos” no seio de Maria Santíssima. A Escritura além de levar à exegese, ela em si mesma provém da Verdade de Deus, revelada na inspiração através da escrita humana, tornando-se fundamento intrínseco da realidade doutrinária de toda a vivência cristã.

No entanto existem algumas afirmações da palavra de Deus que não são uma revelação original. A doutrina de S. Paulo no que respeita ao carater sacrificial da cruz de Cristo, as sessões da teologia joanica, são visões teológicas de algumas afirmações acerca de Jesus e da sua Pessoa que se fizeram a partir da ressurreição. Neste sentido notamos que após o Pentecostes as afirmações que se realizam acerca de toda a relação salvífica de Deus têm uma força que não pode ser menosprezadas, desta forma elas surgem como fazendo parte da “evolução dogmática”. Este acontecimento dentro da própria Escritura é a garantia e o “fio condutor” da própria evolução dogmática. Nos Sinópticos é notório que os autores não se remetem a seguirem as fontes e a serem simples transmissores e recompiladores, eles são intérpretes relativamente às tradições específicas, os textos foram elaborados tendo em conta os destinatários, existindo, por isso, teologias próprias em cada Evangelho, refletidas em palavras, expressões e noções que se passaram acerca da Verdade (unidade global) contida em Jesus.

Desta forma também os dogmas surgidos na época remota tiveram em linha de conta os textos do Novo Testamento, mesmo que estes tivessem algumas intenções particulares.

A Igreja vai basear-se nestes pontos como estruturantes e fundamentais da sua doutrina, como normas permanentes e suportes fundamentais de toda a fé e de toda a teologia do futuro. É assim que a Igreja se vai tornando no verdadeiro depósito da fé, indo desta forma originando e interpretando os dogmas essenciais para a comunidade dos crentes. A afirmação contida nesta reflexão recai sempre na noção de que o entendimento da profundidade do dogma é fundamental para o aperfeiçoamento e esclarecimento da fé. Ao ser acolhido no seio da comunidade, o dogma não pode “entrar” como imposição, mas como plena justificação e fundamento para o próprio acolhimento divino, assim sendo cabe à Igreja investir numa ação que promova cada vez mais a vivência da espiritualidade como fonte do aprofundamento da mensagem contida na Sagrada Escritura. Gostaria de salientar algo que na minha ótica é fundamental: o ponto promotor e dinamizador para o acolhimento do dogma está na abertura à espiritualidade, sendo assim a oração tem um papel fundamental, nela fazemos uma “ligação” íntima com o divino, com aquilo que nos é maior, mas que ao mesmo tempo nos é tão próximo.

Na realidade não podemos ter a mínima dúvida de que existe uma tensão entre a teologia bíblica e a teologia dogmática, este fato é incontestável, basta estarmos atentos ao pensamento de vários teólogos para que esta realidade “salte à vista”. Este afastamento teve as suas origens na Reforma, a própria história do protestantismo contemporâneo tenta ensinar que os temas da teologia bíblica – ligados ao querigma – contribuem para um desprezo para o pensamento dogmático. Obviamente que a Igreja terá cometido alguns excessos em certas posições dogmáticas, no entanto é também óbvio que, a relação entre o querigma e o dogma são íntimos, como por exemplo:

“Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze”
(1 Cor 15,3-5)

“…, acerca do seu Filho, nascido da descendência de David segundo a carne, constituído Filho de Deus em poder, segundo o espírito santificador pela ressurreição de entre os mortos, Jesus Cristo Senhor, por Ele recebemos a graça de sermos Apóstolos, a fim de em honra do seu nome, levarmos obediência da fé a todos os gentios…”
(Rom 1,3-5)

“De facto, são eles próprios que contam o acolhimento que vós nos fizestes e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro e para aguardardes do Céu o seu Filho, que ele ressuscitou de entre os mortos, Jesus, que nos livra da ira que está para vir.”
(1 Ts 1,9-10)

Etc (…)



Este fato não retira a noção de que as formas dogmáticas tenham origem em diversas tradições locais “sitz im leben”. No entanto são estas mesmas tradições, que fazendo parte intrínseco da constituição própria da época intertestamentária, tiveram uma óbvia influencia nos Evangelhos. Esta vinculação, que é mais notória nos Evangelhos sinópticos, estando também presente, à custa de estudos mais recentes, na própria estrutura paulina e joanica, ou seja, também aqui as tradições tiveram um papel decisivo.




A interpretação pela comunidade primitiva cristã, acerca do Antigo Testamento, abre-nos uma nova possibilidade de conhecermos muitas das origens do pensamento dogmático mais amplo no Novo Testamento. Neste sentido as afirmações de Jesus ligadas às profecias da paixão, as palavras sobre o Filho do Homem e outras, foram entendidas à luz da fé na ressurreição do Messias, sendo que a fé deste modo ilumina o próprio dogma.




Assim e voltando ao início, a vida espiritual coloca-nos diante da realidade cristã e das virtudes teologais: fé, esperança e amor (caridade). Esta tripla dimensão resulta na mais bela frase de S. Paulo, aliás frase que sempre me acompanha a todo o momento, porque a resposta de muitas das nossas ansiedades e angústias estão na simplicidade do acolhimento do amor de Deus, que é transformado em missão da própria humanidade, independentemente de religião, que ao partir da vocação primária contida na vida estão assim ligados ao próprio Deus, fonte de toda vida:
“Agora permanecem três coisas: a fé, a esperança e o amor, mas a maior de todas é o amor” (1 Cor 13,13)  







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