Realização da felicidade
Muitas questões se podem
colocar no que respeita à felicidade, no que é ser feliz:
Ser feliz está no que
tenho?
Ser feliz está no que
dou?
Ser feliz é aquilo que
sou?
Ser feliz é aquilo que
não sou?
A felicidade é uma
busca?
A felicidade é o que
quero?
A felicidade é o que
posso?
Poderia ainda colocar
mais questões em relação à felicidade, é pois importante analisarmos o que é
ser feliz.
“É a alegria que se vive
no meio das pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso
convite de Deus nosso Pai: “Meu filho, se tens com quê trata-ta bem (...). Não
te prives da felicidade presente” (Sir 14,11.14). Quanta ternura paterna se
vislumbra por detrás destas palavras!”
(Evangelii gaudium, 6)
A felicidade
apresenta-se muitas vezes segundo duas perspetivas: a circunstancial, que se
prende com as “pequenas coisas” da vida; mas há também a felicidade profunda, a
felicidade ligada à própria existência.
No grande Livro dos
Salmos, logo no seu inicio aparece a orientação para uma vida feliz.
“Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
nem toma parte na reunião dos libertinos;
antes põe o seu enlevo na lei do Senhor
e nela medita dia e noite.
É como a árvore plantada à beira da água corrente:
Dá fruto na estação própria
E a sua folhagem não murcha;
Em tudo o que faz é bem sucedido.
Mas os ímpios não são assim!
São como a palha que o vento leva.
São como a palha que o vento leva.
Por isso, os ímpios não resistirão no julgamento,
Nem os pecadores, na assembleia dos justos.
O Senhor conhece o caminho dos justos,
Mas o caminho dos ímpios conduz à perdição.”
(Sl 1)
Hoje, assombrados pela
depressão e pela desilusão é urgente encontrarmos o sentido profundo da
felicidade. Esse local onde o espírito encontra a sua paz e a sua
tranquilidade.
Neste primeiro Salmo
estamos perante aquilo que leva à felicidade, é notório que na própria ação
humana começa a sua realização. É pois importante não seguir os caminhos da
maldade e da corrupção. A honradez da vida é feita através da promoção da
justiça, da bondade e da misericórdia, nesta postura o homem será “bom fruto” e
por sua vez “dará bons frutos” (cf. Lc 6,43).
Perante as inquietações
da vida, a morte aparece como a grande angustia humana, no entanto o problema
da morte prende-se principalmente na angustia e até medo perante a
possibilidade da dissolução do nosso próprio “eu”, sendo que este “eu” não é
aquilo que realmente sou, mas aquilo que concebo de mim próprio. Esta percepção
do “Meu eu” poder deixar de existir,
enquanto ideia concebida por mim, fecha, muitas vezes, a possibilidade de viver
com a esperança, perdendo assim o otimismo e a força para encarar o futuro. O
“Meu eu” é a forma como me concebo, no entanto esta muitas vezes não é o “eu”
verdadeiro, que se reflete na abertura a Deus enquanto Pai, nessa capacidade de
nos lançarmos nos braços de Deus, para que Ele trabalhe em nós. A promoção da
felicidade não remete para um “ser contente” mesmo com o mundo desabando à
nossa volta, mas sim na paz e tranquilidade em que dignamente encaramos as
derrotas e infortúnios da vida. É este sentido reto, que se eleva ao entusiasmo
que o salmista nos propõe.
No hebraico esta busca
da felicidade/tranquilidade
denomina-se por “Asher”, termo que se
liga no salmo através do termo “Ashrei”,
Bem-aventurado/Feliz.
Este Salmo 1, em que se
apresenta o conceito para a felicidade, tem uma ligação o Salmo 128 no qual o
conceito passa à prática.
“Cântico das
peregrinações.
Felizes os que obedecem
ao Senhor
e andam nos seus
caminhos.
Comerás do fruto do teu
próprio trabalho:
assim serás feliz e
viverás contente.
A tua esposa será como
videira fecunda
na intimidade do teu
lar;
os teus filhos serão
rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao
Senhor.
O Senhor te abençoe do
monte de Sião!
Possas contemplar a
prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua
vida,
e chegues a ver os
filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!”
Sl 128
Na descrição o homem
justo, reto e fiel a Deus é o bem-aventurado do mundo. No texto original “trabalho” aparece como “palma da mão” – “kapek” -, o que é ainda mais demonstrativo do sentido conceito de
felicidade bíblica, assente na construção da vida em dignidade, em que “das palmas das mãos nasce o pão que nos
sustenta”, a existência é composta pela construção de algo, através do
trabalho, da obra, da criação.
Este “construir algo” abre-nos a uma relação
com a “obra de Deus”, YHWH é Aquele
que trabalha para a criação, este não é um Deus estático em que apenas aguarda
pela adoração, mas sim um Deus que se antecipa, que trabalha na criação, que
age no mundo, que se dirige à pessoa humana como o grande veículo para a Sua
manifestação no mundo. Mesmo para os não crentes, a ideia de “semear algo”, está bem presente
enquanto caminho para uma vida em plenitude.
Na tradição rabínica, o
termo “asher” (felicidade) tem uma
variante fonóloga que a liga ao conceito de “ser
rico”, deste modo, rico é aquele que se alegra com o que tem. Isto não
retira a saudável capacidade em se superar, em querer avançar e progredir na
vida, no entanto, e seguindo a lógica da felicidade, o benefício do progresso
não pode assentar na cobiça pessoal, no querer mais riqueza para fechada no eu,
mas na relação com o mundo inteiro. Alegremo-nos com o que temos, não
coloquemos a superação saudável envolvida pela negativo gozo individualista, olhemos
para o mundo como o grande templo de Deus Vivo.
Vivemos um tempo em que a própria família (elemento fundamental da base da felicidade profunda) está em risco, o amor e a partilha perderam o seu profundo sentido, buscamos os feitos extraordinários, quando muitas vezes a felicidade constrói-se na simplicidade da beleza suprema do gesto do amor que ilumina o coração de quem recebe e naturalmente de quem dá.
Vivemos um tempo em que a própria família (elemento fundamental da base da felicidade profunda) está em risco, o amor e a partilha perderam o seu profundo sentido, buscamos os feitos extraordinários, quando muitas vezes a felicidade constrói-se na simplicidade da beleza suprema do gesto do amor que ilumina o coração de quem recebe e naturalmente de quem dá.
O rico entre os ricos é
aquele que se alegra com a parte que tem na sua realidade concreta de vida, uma
parte “conquistada” através de uma postura de verdade e honestidade perante o
que lhe aparece. Não olhemos com “ciúme” para o “nosso vizinho”, não cobicemos
o que os outros têm, mas dignifiquemos aquilo que temos, olhando
sempre com compaixão para os que nada têm. É esta a corrente da justiça, viver
num olhar profundo para tudo o que nos rodeia, não deixando que ninguém fique
para trás, mas que faça o caminho ao nosso lado, como Jesus faz (cf. Lc
24,13-35).
O Fruto das Nossas Mãos
“Esta verdade, segundo a qual o homem mediante o trabalho
participa na obra do próprio Deus, seu Criador, foi particularmente posta em
relevo por Jesus Cristo, aquele que muitos dos seus primeiros ouvintes em
Nazaré “enchiam-se de espanto e diziam: De é que lhe vem e que sabedoria é esta
que lhe foi dada? (…) Não é ele o carpinteiro?” (Mc 6,2-3). Com efeito, Jesus
não só proclamava, mas sobretudo punha em prática com as obras o “Evangelho”
que lhe foi confiado, a Palavra da Sabedoria eterna.
Por esta razão, tratava-se do “evangelho do trabalho”, pois
Aquele que o proclamava era Ele próprio homem do trabalho, do trabalho
artesanal como José de Nazaré.”
(Laborem exercens, 26) (1981)
Sem trabalho a dignidade
da pessoa humana tende a esfumar-se, não tenho palavras que expressem a minha
total indignação perante as palavras de Passos Coelho, primeiro-ministro, que
acerca das pessoas que se encontravam na situação de desemprego disse que podia ser uma oportunidade para elas. Em vez de dignificar e promover a criação de
emprego, o primeiro-ministo olha para o drama do desemprego com uma total falta
de respeito e de uma maneira tão fria, que chega a ser constrangedor…, para que
fique bem explícito, dignidade e trabalho completam-se como caminho para uma
fica feliz,
A humilhação do
desemprego, a humilhação da miséria, a humilhação de pedir, leva à total
destruição da auto-estima, desequilibrando a tranquilidade necessária para a
construção da felicidade profunda. A nossa semelhança a Deus (cf, Gn 1,27)
dá-se também através do trabalho, na nossa capacidade de criação colocamo-nos
como co-criadores com Deus, assim a ação criadora do homem faz parte da
identificação da sua existência, desta forma, o não-trabalho (o desemprego)
origina fatalmente a extrema deterioração do sentimento da dignidade, utilidade
e mesmo do sentido da vida, porque a tristeza do impedimento de trazer o “pão
do seu sustento” é inimaginável e, na maior parte das vezes, perigosamente
silenciosa.
O salmista ao colocar a
concretização da felicidade ligada ao lar, torna-a tremendamente atual - quem
diz que o “desemprego é uma oportunidade” (!) não sabe do que fala e demonstra
uma constrangedora ignorância -, a família, enquanto base social, ao passar por
este drama fica “navegando” num mar de incertezas, em que a esperança vai
esvaindo-se perante o temor paralisante do futuro.
A
colocação da ação social nas agendas dos líderes políticos, tem que ser a
prioridade das prioridades, já que tudo o que se prende com a pessoa humana
deverá estar a cima de qualquer estratégia económica. Cortar a identidade do
homem, aquilo que o define perante a comunidade, coloca-o à margem, não somente
não somente do sistema, como dos que lhe são mais queridos. É por isso que se
gera a indignação e a violência, preparando-se o caminho para os extremismos,
que através da revolta da sociedade ganha poder, um caminho que já conhecemos,
e que tanto mal fez ao mundo. A civilização tem que aperceber-se que a
clivagem, cada vez maior, da sociedade, associado a enormes percentagens de
desemprego, a grandes níveis de pobreza, geram a falência de qualquer sistema.
O
texto bíblico tem em toda a sua estrutura narrativa a noção da dignidade bem
vincada, sendo que no Novo Testamento, e com a ação de Jesus esta atinge o seu mis elevado grau.
“Abençoando-os, Deus
disse:
“Crescei,
multiplicai-vos, enchei e submetei a terra.
Dominai sobre os peixes
do mar, sobre as aves do céu e sobre os animais da terra”
(Gn 1,28)
A
mensagem da criação, a “proposta” de Deus assenta no crescer, mas num crescer
que implica dignidade e trabalho, estes são os trilhos para a implantação do
Reino de Deus.
O
Reino de Deus, citado 119 vezes no Novo Testamento, é a mensagem principal de
Jesus, este é o “projeto de Deus”,
nesta realização assentam os valores fundamentais para a felicidade profunda,
como a verdade, justiça, a paz, a fraternidade, o perdão, a liberdade, a
alegria, a compaixão e fundamentalmente a dignidade humana. Este é o Reino que
trás consigo a valorização da criação em toda a sua dimensão.
O
trabalho gera o fruto da dignidade, sem o qual a construção da felicidade fica
sempre adiada, não nos podemos jamais esquecer, só quem é digno e honesto na
vida é verdadeiramente feliz. A importância do Reino de Deus não se cumpre
apenas na resolução das questões básicas da sobrevivência, este direciona-se
para a sustentação das bases para um futuro valido para a humanidade (cf. Rm
14,17).
Existe
em certo “conceito ideal” para alguns, para quem a felicidade seria realidade
plenamente na condição de viver sem trabalhar. Não me refiro, obviamente,
àqueles que não têm trabalho, mas sim aos que podendo ou mesmo tendo não querem
trabalhar. Este é um conceito errado, já que o ócio voluntário (a preguiça)
leva a que se perca o próprio rumo face ao mundo que nos rodeia, colocando o
homem na alienação perante o vai acontecendo. Uma coisa é trabalhar em alguma,
ou nalguma função para a qual não nos sentimos vocacionados; nestes casos
existe o desejo legitimo em alterar o percurso; outra é não querer trabalhar,
viver sem produzir e criar algo para quem existe à nossa volta, seja família,
colegas de trabalho, comunidade, etc. Estando a felicidade ligada à construção
de algo, esta será o próprio alimento edificador da felicidade, tendo
obviamente de provocar algo de bom.
O
sábio é aquele que faz da sua inteligência, sapiência, sensibilidade,
criatividade e inspiração, um instrumento para reforçar o bem comum, exemplos
Mandela, Gandhi e tantos outros, não das suas convicções mera retórica que se
esvoaçam no tempo, eles trabalharam “com as suas mãos” e com as suas vidas para
que o mundo tornar-se num lar para todos. O sábio liga o divino ao terreno,
direciona a realidade para o bem, “escancara” as portas da esperança ao mundo.
“A virtude da esperança
corresponde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração de todo o
homem; assume as esperanças que inspiram as atividades dos homens, purifica-as
e ordena-as para o Reino dos céus; protege o desânimo; sustenta o abatimento;
dilata o coração na expectativa da bem-aventurança eterna. O ânimo que a
esperança dá, preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade.”
(CIC, 1818)
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