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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

FELICIDADE 2/5

Realização da felicidade

Muitas questões se podem colocar no que respeita à felicidade, no que é ser feliz:
Ser feliz está no que tenho?
Ser feliz está no que dou?
Ser feliz é aquilo que sou?
Ser feliz é aquilo que não sou?
A felicidade é uma busca?
A felicidade é o que quero?
A felicidade é o que posso?

Poderia ainda colocar mais questões em relação à felicidade, é pois importante analisarmos o que é ser feliz.

“É a alegria que se vive no meio das pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai: “Meu filho, se tens com quê trata-ta bem (...). Não te prives da felicidade presente” (Sir 14,11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás destas palavras!”

A felicidade apresenta-se muitas vezes segundo duas perspetivas: a circunstancial, que se prende com as “pequenas coisas” da vida; mas há também a felicidade profunda, a felicidade ligada à própria existência.
No grande Livro dos Salmos, logo no seu inicio aparece a orientação para uma vida feliz.

“Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
nem toma parte na reunião dos libertinos;
antes põe o seu enlevo na lei do Senhor
e nela medita dia e noite.
É como a árvore plantada à beira da água corrente:
Dá fruto na estação própria
E a sua folhagem não murcha;
Em tudo o que faz é bem sucedido.

Mas os ímpios não são assim!
São como a palha que o vento leva.
Por isso, os ímpios não resistirão no julgamento,
Nem os pecadores, na assembleia dos justos.
O Senhor conhece o caminho dos justos,
Mas o caminho dos ímpios conduz à perdição.”
(Sl 1)

Hoje, assombrados pela depressão e pela desilusão é urgente encontrarmos o sentido profundo da felicidade. Esse local onde o espírito encontra a sua paz e a sua tranquilidade.

Neste primeiro Salmo estamos perante aquilo que leva à felicidade, é notório que na própria ação humana começa a sua realização. É pois importante não seguir os caminhos da maldade e da corrupção. A honradez da vida é feita através da promoção da justiça, da bondade e da misericórdia, nesta postura o homem será “bom fruto” e por sua vez “dará bons frutos” (cf. Lc 6,43).
Perante as inquietações da vida, a morte aparece como a grande angustia humana, no entanto o problema da morte prende-se principalmente na angustia e até medo perante a possibilidade da dissolução do nosso próprio “eu”, sendo que este “eu” não é aquilo que realmente sou, mas aquilo que concebo de mim próprio. Esta percepção do “Meu eu” poder  deixar de existir, enquanto ideia concebida por mim, fecha, muitas vezes, a possibilidade de viver com a esperança, perdendo assim o otimismo e a força para encarar o futuro. O “Meu eu” é a forma como me concebo, no entanto esta muitas vezes não é o “eu” verdadeiro, que se reflete na abertura a Deus enquanto Pai, nessa capacidade de nos lançarmos nos braços de Deus, para que Ele trabalhe em nós. A promoção da felicidade não remete para um “ser contente” mesmo com o mundo desabando à nossa volta, mas sim na paz e tranquilidade em que dignamente encaramos as derrotas e infortúnios da vida. É este sentido reto, que se eleva ao entusiasmo que o salmista nos propõe.

No hebraico esta busca da felicidade/tranquilidade denomina-se por “Asher”, termo que se liga no salmo através do termo “Ashrei”, Bem-aventurado/Feliz.
Este Salmo 1, em que se apresenta o conceito para a felicidade, tem uma ligação o Salmo 128 no qual o conceito passa à prática.

“Cântico das peregrinações.

Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
 
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao Senhor.
O Senhor te abençoe do monte de Sião!
Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida,
e chegues a ver os filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!”
Sl 128

Na descrição o homem justo, reto e fiel a Deus é o bem-aventurado do mundo. No texto original “trabalho” aparece como “palma da mão”“kapek” -, o que é ainda mais demonstrativo do sentido conceito de felicidade bíblica, assente na construção da vida em dignidade, em que “das palmas das mãos nasce o pão que nos sustenta”, a existência é composta pela construção de algo, através do trabalho, da obra, da criação.
Este “construir algo” abre-nos a uma relação com a “obra de Deus”, YHWH é Aquele que trabalha para a criação, este não é um Deus estático em que apenas aguarda pela adoração, mas sim um Deus que se antecipa, que trabalha na criação, que age no mundo, que se dirige à pessoa humana como o grande veículo para a Sua manifestação no mundo. Mesmo para os não crentes, a ideia de “semear algo”, está bem presente enquanto caminho para uma vida em plenitude.

Na tradição rabínica, o termo “asher” (felicidade) tem uma variante fonóloga que a liga ao conceito de “ser rico”, deste modo, rico é aquele que se alegra com o que tem. Isto não retira a saudável capacidade em se superar, em querer avançar e progredir na vida, no entanto, e seguindo a lógica da felicidade, o benefício do progresso não pode assentar na cobiça pessoal, no querer mais riqueza para fechada no eu, mas na relação com o mundo inteiro. Alegremo-nos com o que temos, não coloquemos a superação saudável envolvida pela negativo gozo individualista, olhemos para o mundo como o grande templo de Deus Vivo.

Vivemos um tempo em que a própria família (elemento fundamental da base da felicidade profunda) está em risco, o amor e a partilha perderam o seu profundo sentido, buscamos os feitos extraordinários, quando muitas vezes a felicidade constrói-se na simplicidade da beleza suprema do gesto do amor que ilumina o coração de quem recebe e naturalmente de quem dá.

O rico entre os ricos é aquele que se alegra com a parte que tem na sua realidade concreta de vida, uma parte “conquistada” através de uma postura de verdade e honestidade perante o que lhe aparece. Não olhemos com “ciúme” para o “nosso vizinho”, não cobicemos o que os outros têm, mas dignifiquemos aquilo que temos, olhando sempre com compaixão para os que nada têm. É esta a corrente da justiça, viver num olhar profundo para tudo o que nos rodeia, não deixando que ninguém fique para trás, mas que faça o caminho ao nosso lado, como Jesus faz (cf. Lc 24,13-35).


O Fruto das Nossas Mãos

“Esta verdade, segundo a qual o homem mediante o trabalho participa na obra do próprio Deus, seu Criador, foi particularmente posta em relevo por Jesus Cristo, aquele que muitos dos seus primeiros ouvintes em Nazaré “enchiam-se de espanto e diziam: De é que lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? (…) Não é ele o carpinteiro?” (Mc 6,2-3). Com efeito, Jesus não só proclamava, mas sobretudo punha em prática com as obras o “Evangelho” que lhe foi confiado, a Palavra da Sabedoria eterna.
Por esta razão, tratava-se do “evangelho do trabalho”, pois Aquele que o proclamava era Ele próprio homem do trabalho, do trabalho artesanal como José de Nazaré.”
(Laborem exercens, 26) (1981)

Sem trabalho a dignidade da pessoa humana tende a esfumar-se, não tenho palavras que expressem a minha total indignação perante as palavras de Passos Coelho, primeiro-ministro, que acerca das pessoas que se encontravam na situação de desemprego disse que podia ser uma oportunidade para elas. Em vez de dignificar e promover a criação de emprego, o primeiro-ministo olha para o drama do desemprego com uma total falta de respeito e de uma maneira tão fria, que chega a ser constrangedor…, para que fique bem explícito, dignidade e trabalho completam-se como caminho para uma fica feliz,



A humilhação do desemprego, a humilhação da miséria, a humilhação de pedir, leva à total destruição da auto-estima, desequilibrando a tranquilidade necessária para a construção da felicidade profunda. A nossa semelhança a Deus (cf, Gn 1,27) dá-se também através do trabalho, na nossa capacidade de criação colocamo-nos como co-criadores com Deus, assim a ação criadora do homem faz parte da identificação da sua existência, desta forma, o não-trabalho (o desemprego) origina fatalmente a extrema deterioração do sentimento da dignidade, utilidade e mesmo do sentido da vida, porque a tristeza do impedimento de trazer o “pão do seu sustento” é inimaginável e, na maior parte das vezes, perigosamente silenciosa.
O salmista ao colocar a concretização da felicidade ligada ao lar, torna-a tremendamente atual - quem diz que o “desemprego é uma oportunidade” (!) não sabe do que fala e demonstra uma constrangedora ignorância -, a família, enquanto base social, ao passar por este drama fica “navegando” num mar de incertezas, em que a esperança vai esvaindo-se perante o temor paralisante do futuro.
A colocação da ação social nas agendas dos líderes políticos, tem que ser a prioridade das prioridades, já que tudo o que se prende com a pessoa humana deverá estar a cima de qualquer estratégia económica. Cortar a identidade do homem, aquilo que o define perante a comunidade, coloca-o à margem, não somente não somente do sistema, como dos que lhe são mais queridos. É por isso que se gera a indignação e a violência, preparando-se o caminho para os extremismos, que através da revolta da sociedade ganha poder, um caminho que já conhecemos, e que tanto mal fez ao mundo. A civilização tem que aperceber-se que a clivagem, cada vez maior, da sociedade, associado a enormes percentagens de desemprego, a grandes níveis de pobreza, geram a falência de qualquer sistema.

O texto bíblico tem em toda a sua estrutura narrativa a noção da dignidade bem vincada, sendo que no Novo Testamento, e com a ação de Jesus esta  atinge o seu mis elevado grau.

“Abençoando-os, Deus disse:
“Crescei, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra.
Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre os animais da terra”
(Gn 1,28)

A mensagem da criação, a “proposta” de Deus assenta no crescer, mas num crescer que implica dignidade e trabalho, estes são os trilhos para a implantação do Reino de Deus.
O Reino de Deus, citado 119 vezes no Novo Testamento, é a mensagem principal de Jesus, este é o “projeto de Deus”, nesta realização assentam os valores fundamentais para a felicidade profunda, como a verdade, justiça, a paz, a fraternidade, o perdão, a liberdade, a alegria, a compaixão e fundamentalmente a dignidade humana. Este é o Reino que trás consigo a valorização da criação em toda a sua dimensão.
O trabalho gera o fruto da dignidade, sem o qual a construção da felicidade fica sempre adiada, não nos podemos jamais esquecer, só quem é digno e honesto na vida é verdadeiramente feliz. A importância do Reino de Deus não se cumpre apenas na resolução das questões básicas da sobrevivência, este direciona-se para a sustentação das bases para um futuro valido para a humanidade (cf. Rm 14,17).

Existe em certo “conceito ideal” para alguns, para quem a felicidade seria realidade plenamente na condição de viver sem trabalhar. Não me refiro, obviamente, àqueles que não têm trabalho, mas sim aos que podendo ou mesmo tendo não querem trabalhar. Este é um conceito errado, já que o ócio voluntário (a preguiça) leva a que se perca o próprio rumo face ao mundo que nos rodeia, colocando o homem na alienação perante o vai acontecendo. Uma coisa é trabalhar em alguma, ou nalguma função para a qual não nos sentimos vocacionados; nestes casos existe o desejo legitimo em alterar o percurso; outra é não querer trabalhar, viver sem produzir e criar algo para quem existe à nossa volta, seja família, colegas de trabalho, comunidade, etc. Estando a felicidade ligada à construção de algo, esta será o próprio alimento edificador da felicidade, tendo obviamente de provocar algo de bom.

O sábio é aquele que faz da sua inteligência, sapiência, sensibilidade, criatividade e inspiração, um instrumento para reforçar o bem comum, exemplos Mandela, Gandhi e tantos outros, não das suas convicções mera retórica que se esvoaçam no tempo, eles trabalharam “com as suas mãos” e com as suas vidas para que o mundo tornar-se num lar para todos. O sábio liga o divino ao terreno, direciona a realidade para o bem, “escancara” as portas da esperança ao mundo.

“A virtude da esperança corresponde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração de todo o homem; assume as esperanças que inspiram as atividades dos homens, purifica-as e ordena-as para o Reino dos céus; protege o desânimo; sustenta o abatimento; dilata o coração na expectativa da bem-aventurança eterna. O ânimo que a esperança dá, preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade.”
(CIC, 1818)



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