1.
"Tridentino" é, segundo os dicionários, um adjectivo relativo à cidade
italiana de Trento ou ao concílio aí realizado, no séc. XVI (1545-1563),
para tratar dos problemas do mundo católico, abalado pelo movimento da
Reforma protestante, um rio de muitos afluentes.
Este demorado concílio, duas vezes
interrompido, alimentou, durante muito tempo, polémicas preconceituosas e
ideológicas, entre adversários e apologistas. Com o acesso directo às
fontes documentais, oficiais e privadas, além da maior atenção aos
factores políticos e sociais que o influenciaram, foi-se atenuando o
"mito" da decadência defendida por uns e a apologia divinizante de
outros. O rigor possível do conhecimento histórico torna a sua
revisitação importante para distinguir o que lhe pertence e o que são
criações da sua posteridade.
Frei Bento Domingues O.P. |
Este concílio chegou tarde - já estava
consumada a cisão na Igreja do Ocidente - e começou a ser tão lento na
reforma, devido à inércia da cúria romana, que o jesuíta Roberto
Belarmino chegou a defender a celebração de um novo. No entanto, durante
séculos, o prestígio e a autoridade do concílio de Trento foi sempre
crescendo e, levado pelas circunstâncias, exerceu uma função reguladora
de toda a vida eclesial. Os papas, do fim do século XVI e seguintes,
orientaram tudo para que a Igreja visse no Concílio de Trento a regra
última da fé e da disciplina, o filtro indispensável para o conhecimento
da verdade. Nele estava englobado e assumido tudo o que havia de bom no
passado e a solução de todos os problemas doutrinários e institucionais
do presente e do futuro, da Igreja e do mundo. Num manuscrito,
conservado na biblioteca universitária de Bolonha, uma mão anónima
escreveu: "Quem estuda este (concílio) a fundo pode dizer que conhece
todos os concílios que foram celebrados no passado, porque, em síntese,
os contém a todos."
A Igreja pós-tridentina foi adquirindo
uma tal solidez que, na fase aguda da separação protestante, ninguém a
teria julgado possível. É do conhecimento geral que este tridentinismo
conseguiu penetrar, de maneira notável, em certas zonas do meio
reformado.
2. Recorrer à expressão "tridentinismo"
soa mal e não figura no dicionário, mas é uma descoberta feliz de G.
Alberigo, um grande historiador italiano. Serve para designar o sistema
ligado ao prestígio do referido concílio que, na Igreja Católica, fez
depender tudo - governo, teologia e disciplina - do poder absoluto do
papado romano e da sua cúria. Em nome da unidade religiosa e da
obediência ao sucessor de Pedro, reprimia o que o pudesse pôr em causa,
considerando a emancipação política, cultural e religiosa do mundo
moderno apenas um somatório de erros que o envenenava (1).
Para Yves Congar, trata-se de um sistema
simultaneamente teológico e jurídico, centrado na cúria romana, bem
organizada e poderosa. Não era apenas um centro de decisão. Depois da
supressão das universidades ou centros religiosos de estudos e mediante a
instauração de colégios teológicos, em Roma, teve como consequência a
própria centralização da teologia. Dominava a formação dos espíritos
através de manuais latinos, vigiava as publicações e o ensino, deixando
pouco espaço à criatividade e à originalidade. Esta teologia
pós-tridentina construiu uma eclesiologia que era, sobretudo, uma
"hierarquiologia" sob o signo da afirmação da autoridade, em clima de
controvérsia. No plano do culto e da piedade, predominavam o
sacramentalismo, as práticas exteriores e o aumento de novas formas de
devoção, favorecidas pela enorme distribuição de indulgências (2).
3. A tendência para
concentrar tudo no papado, na teologia do magistério e nas suas
"proposições irreformáveis" teve expressões ultra-ridículas, estudadas,
com muito cuidado, por J-M. Tillard (3). O Papa é o sucessor de Deus,
pastor de todos os fiéis e enviado para assegurar o bem comum da Igreja
universal e o bem de cada uma das Igrejas. Não esqueçamos que o próprio
Pio IX dizia: "A tradição sou eu!" São expressões extremas doultramontanismo que,
pela boca de Lamennais, confessava: "Sem Papa não há Igreja; sem Igreja
não há cristianismo, sem cristianismo não há sociedade: por isso, a
vida das nações europeias tem a sua fonte, a sua única fonte, no poder
pontifício."
Não podemos recuperar aqui as afirmações
recolhidas por Yves Congar sobre a autoridade, na eclesiologia do séc.
XIX. G. Alberigo julgava que o "tridentinismo" tinha morrido no Vaticano
II. De facto, ressuscitou nos anos 80, com as chamadas "proposições
irreformáveis do magistério", mesmo quando não traziam o certificado da
"infalibilidade". É a teologia que sofre e imigra. Espero que tenha sido
das últimas décadas de esterilidade teológica.
Ao que parece, o Papa Francisco quer voltar a dar a palavra a todos os católicos e ouvir todas as pessoas de boa vontade.
(1) Cf. Novas Perspectivas sobre o Concílio de Trento.Concilium 07.09.1965, pg 58-72; Du concile de Trente au tridentinisme, Irénikon, 54, 1981. pg 192-210
(2) Yves Congar, Eglise et Papauté, Cerf, Paris,1994, pg 51-64 ; Cf .Bernard Sesboüé/Christoph Theobald, La Parole du Salut, T. 4, Désclées, 1996, pg 176 ss
(3) J.-M. Tillard, O.P., L"évêque de Rome, Cerf, 1982
Fonte: Público
Público |
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